Estão ressuscitando no Conad o que superamos há 20 anos, afirma especialista

31 de janeiro, 2018 Plataforma PBPD Permalink

 

Ministro Osmar Terra, do Desenvolvimento Social e Agrário, autor de resolução apresentada ao Conad

 

O Conselho Nacional de Política sobre Drogas, ligado ao Ministério da Justiça, é o mais importante colegiado do país sobre o campo, responsável por formular e acompanhar a política nacional de drogas e gerir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, composto por conselhos nacionais, locais e órgãos da Administração Pública. É formado por 13 representantes da sociedade civil e 13 do poder público, como o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário – hoje comandado por Osmar Terra.

 

Desde a chegada de Terra à pasta, porém, o Conad vem sofrendo forte influência do campo conservador, que impactou também a direção da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas e a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Defensor da internação compulsória e do fortalecimento das comunidades terapêuticas, Osmar Terra é autor de um projeto de lei (PLC 37) que aumenta a pena para pessoas acusadas de tráfico de drogas.

 

Em dezembro, às vésperas do Natal, o ministro apresentou ao Conad uma nova proposta para a política nacional de drogas, que será votada amanhã. Em linhas gerais, a resolução ignora a redução de danos como alternativa terapêutica e enfraquece os espaços de tratamento em liberdade, como os CAPS-AD, ligados ao SUS.


“A orientação Central da Política Nacional sobre Drogas deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contraria da população, brasileira quanto a iniciativas de legalização de drogas”, afirma o texto, que também retoma o andamento do PLC 37 no Congresso Nacional como um dos argumentos favoráveis à revisão da política nacional de drogas.


Para entender o que está em jogo e quais os atores e campos engajados na formulação de novas diretrizes para o campo das drogas, o PBPD Entrevista traz a professora da Universidade de Brasília, Andrea Gallassi:

Como você analisa o momento atual da política de drogas?

Pensando no campo das drogas, sobretudo no cuidado das pessoas, estamos nesse momento no final de uma curva de Gauss, que é aquela que sai debaixo, sobe e forma um pico e depois desce. No passado, há cerca de 20 anos, a gente teve uma luta muito grande de militantes que reviram a política de saúde mental como um todo. Toda essa luta culminou na mudança da lei [em 2001, foi aprovada a Lei Antimanicomial]. Com essa alteração da lei, os equipamentos de promoção do cuidado dessas pessoas também foram modificados: deixou-se de investir em hospitais psiquiátricos, que tinham um histórico de violações de direitos, e passou-se a oferecer o cuidado em espaços abertos e comunitários.

As drogas pegaram carona nesse movimento e, em 2006, foi aprovada uma nova Lei de Drogas, que tem muitos problemas, mas que de alguma maneira cita  a redução de danos e o cuidado humanizado das pessoas que fazem uso problemático de drogas — coisa que a gente não tinha até então. Quando eu falo da Curva de Gauss é por causa disso. Fomos subindo, sobretudo com a Política Nacional sobre Drogas, na qual está escrito de forma clara a redução de danos e outras práticas de cuidado. Conquistamos grandes avanços: a Lei Antimanicomial, em 2001, a Política Nacional sobre Drogas, que mostrou a questão das drogas para além da polícia e da segurança, e, logo no primeiro mandato da ex-presidente Dilma, ela retirou a Senad [Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas] do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, que era um gabinete militar, era a antiga Casa Militar, e a realocou no Ministério da Justiça. Isso foi muito questionado à época, porque o melhor teria sido colocar na pasta da Saúde, enfim, mas esse ato foi muito simbólico. O pico dessa curva, o auge desse momento foi em meados de 2011, quando o plano crack [Programa Crack: é possível vencer] foi lançado. Ele teve muitas controvérsias, mas nunca nós tivemos como um foco tão evidenciado a questão das drogas numa perspectiva de cuidado. E a gente nunca teve tanto recurso para investir nisso como naquele momento.

 

Então por mais que tenha sido um programa de governo só sobre crack, ele trouxe muitos benefícios: recursos financeiros, ampliação da rede de cuidado, capacitações, enfim. O auge de tudo isso foi quando a gente começou a fazer discussões mais arrojadas no campo antiproibicionista. Foi possível discutir em espaços participativos e democráticos, como o Conad, por exemplo, sobre o próprio modelo de proibição das drogas. Foi possível ventilar esse tema dentro desses espaços.

Como vem sendo a postura do Conad nos últimos tempos? Você diria que essa é a composição mais conservadora do Conselho?

Nos últimos 20 anos, o Conad teve grandes marcos, como a resolução feita no âmbito do Conselho sobre o uso da ayahuasaca em rituais religiosos. O Conad sustentou em 2004 a decisão de que a ayahuasca era, sim, uma substância permitida em contextos religiosos. Eu destaquei uma, mas ele teve grandes participações, teve momentos importantes. No últimos dez anos, sobretudo, participando ativamente de debates sobre política de drogas e permitindo que essas discussões mais arrojadas e polêmicas, também, acontecessem naquele espaço.

Não dá para dizer que o Conad sempre foi um conselho progressista e que este é um momento mais conservador. Ele historicamente nunca foi palco de grandes avanços, sempre foi muito alinhado à postura do governo que estivesse na ocasião. Mas por outro lado, ele vinha tentando buscar um protagonismo e trazer essa agenda [democrática] nesse últimos anos. Até que ele sofre um impacto importante, uma vez que é um Conselho que passou o último ano sem se reunir, fazendo a única reunião de 2017 bem no final do ano. Isso não era comum antes.

A resolução apresentada pelo Osmar Terra é bem generalista, bem ampla. Com exceção de dois pontos, um sobre o baixo apoio da população brasileira à flexibilização das drogas e o outro sobre o PLC 37, no texto as armadilhas não estão tão evidentes assim.  Quais riscos a nova proposta traz?

Afirmar que nenhuma proposta de flexibilização da lei de drogas agrada a população é ser demagógico, uma vez que a população não é bem informada sobre esse assunto. Quando se tem alguma informação sobre o tema, ela normalmente é enviesada, desprovida de conteúdos que problematizem, detalhem e ampliem o tema das drogas. Fazer referência ao PLC 37 é como se a gente tivesse uma resolução sendo redigida à luz de um projeto de lei que tem elementos que retrocedem nos avanços que o Brasil já conseguiu — e que o mundo já conseguiu faz tempo. Quando a gente propõe uma resolução que tem como referência conteúdos que já foram superados, num país que é um dos mais desatualizados em matéria de drogas, a gente volta ainda mais para trás nos avanços que a gente conseguiu. Não há uma menção ao termo “redução de danos”, por exemplo. Ela foca na abstinência, coisa que a gente já superou na Política Nacional sobre Drogas de 2006.

Tem uma coisa importante nessa resolução que fica meio ampla, sem detalhes, mas que com uma lupa a gente consegue entender: é a menção ao ‘fomento à rede de suporte social’. Esse trecho é genérico, mas faz alusão às comunidades terapêuticas que são hoje consideradas organizações de suporte social — não são de saúde –. E a velha discussão sobre as comunidades terapêuticas tem a ver com o modelo, que recrudesce o modelo manicomial, fechado, de internação de longa permanência, que nós avançamos nessa pauta com a reforma psiquiátrica em 2001. Essa resolução reacende essa proposta. E tem a questão da abordagem, norteado pela abstinência, somente, e a vocação religiosa, também. Isso é muito importante de dizer, porque são instituições que recebem financiamento público. Eu tive a experiência de visitar algumas delas quando estava na Senad. Eu perguntei ‘se eu quiser me internar, mas não sou evangélica. Como funciona?’ e eles disseram que eu era obrigada a participar das atividades religiosas. Nem todas essas instituições são um problema, mas são instituições com esse perfil que eu coloquei e que são financiadas com recurso público.
As comunidades terapêuticas são organizações que não têm evidências científicas de eficácia. Ao contrário: as evidências demonstram que esses serviços de longa permanência não trazem um maior índice de abstinência.

E a partir do momento em que a gente tem uma resolução que sustenta ou ampara esse tipo de abordagem para receber financiamento, estamos criando um ‘subsistema’ dentro do próprio sistema de saúde, porque [as comunidades terapêuticas] não são equipamentos que compõem a rede de saúde. E estamos direcionamento investimento público para esse tipo de intervenção, não tendo muitas vezes dinheiro suficiente para ampliar os equipamentos efetivamente de saúde.

A polarização entre os campos conservador e progressista está, mais do que nunca, às claras. Como essa divisão entre os dois polos tem afetado a política de drogas? Ano passado, por exemplo, tivemos uma mudança importante com relação às comunidades terapêuticas, que passaram a integrar a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

A Senad sempre foi muito distante da Coordenação Nacional de Saúde Mental, do Ministério da Saúde. Sempre. Aí, conforme a curva vai subindo por causa das melhorias no campo, o encontro entra essas duas instituições públicas começa a ficar mais próximo, mais aparente. E lá em meados de 2011 começou o processo de franca aproximação entre a Senad e o Ministério da Saúde. Essa aproximação trouxe claramente avanços importantes com relação à implementação da política de drogas, porque a Senad, sendo responsável por formular a política [de drogas], quando ela se aproxima da saúde ela consegue potencializar as agendas de prevenção, cursos, enfim. Tinha mais recursos para essa política. Ao mesmo tempo em que esse contato foi se fortalecendo, a gente acendeu o desejo das organizações da sociedade civil, em especial as redes de comunidades terapêuticas, que se aproximaram desse ‘filão’ para receber os recursos públicos. Foi nesse período em que o governo passou a sofrer uma pressão muito grande da sociedade civil solicitando que houvesse financiamento, capacitação, enfim. Toda essa pressão, somada à [articulação] da bancada evangélica, fez com que o governo, por meio da Senad e do Ministério da Saúde, tivesse que engolir o fato de que as comunidades terapêuticas iam compor a Rede de Atenção [Psicossocial]. Foi feita toda uma construção para aproximar essas organizações dos equipamentos efetivamente de saúde. Esse foi um momento bem difícil dentro do próprio governo na época, porque a gente tinha que destinar uma grande parte dos recursos para essas instituições meramente para atender a essa pressão.

Antes da Dilma sair, ela loteou a Esplanada e deu o cargo de ministros para PMDB. Nessa ocasião foi quando assumiu o ministro Marcelo Castro, que colocou na Coordenação de Saúde Mental o ex-diretor do maior manicômio da América Latina [Valencius Wurch Duarte Filho].

Com a mudança de governo, em 2016, a coisa realmente escancara. E aí assume o Ricardo Barros no Ministério da Saúde, que coloca na Coordenação de Saúde Mental uma pessoa ligada à Associação Brasileira de Psiquiatria, que é uma associação sabidamente conservadora e que defende, inclusive, a volta dos hospitais psiquiátricos, por exemplo. Esse é mais um dos reveses que estamos vivendo atualmente, que foi materializado na reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), na qual foi aprovada a nova política de saúde mental, que ressuscitou depois de 20 anos o hospital psiquiátrico como um partícipe da rede de cuidado e, consequentemente, como recebedor de recursos e coma a possibilidade de ampliar leitos, enfim.



Qual sua expectativa para a votação de amanhã? Se for aprovada, qual o impacto dessa resolução nas políticas estaduais e municipais de drogas?

Eu acho que não vai passar. Eu acho que a votação vai ser suspensa. Eu acredito que os representantes que compõem o Conselho vão conseguir barrar essa votação a toque de caixa, promover uma discussão mais aprofundada e, consequentemente, propor mudanças, porque ela foi apresentada no final do ano e sem nenhum debate. Concordando ou não, quem está fazendo parte do Conad vai querer no mínimo debater a proposta, até porque as pessoas podem ter se sentido feridas na sua posição de conselheiras.

Imaginando que isso seja votado e aprovado, considerando o pior cenário, o impacto será significativo nas duas principais frentes ligadas ao campo: a primeira é na saúde. Ela inverte suas prioridades de investimento e os equipamentos de hospitalização, confinamento, etc, passam a ser prioritários como espaços para cuidado, indo completamente contra o que se faz no mundo para tratar pessoas que tem problemas com drogas. E um segundo impacto será com relação à segurança pública. Porque se eu tenho uma política que ressuscita a criminalização de usuários e de tratamento com confinamento, eu aumento a compreensão desse problema [das drogas] como sendo um problema da segurança pública, de crime. Eu temo por isso.