“O Brasil tem muito a ensinar”, diz pesquisadora brasileira sobre estudos com psicodélicos

8 de junho, 2017 Plataforma PBPD Permalink

Com pesquisas iniciadas somente na metade do século XX, a ciência psicodélica vem pouco a pouco ganhando espaço entre diversos campos do conhecimento, indo desde pesquisas antropológicas até às biomédicas. O uso terapêutico de substâncias como MDMA e a ayahuasca, com resultados já aferíveis, foi um dos grandes temas debatidos na Conferência de Ciência Psicodélica (Psychedelic Science 2017), realizada em abril na Califórnia (EUA).

Em entrevista à Plataforma, a antropóloga brasileira Beatriz Labate, membro do Conselho Consultivo da PBPD, professora Visitante do Centro de Pesquisa e Estudos de Pós Graduação em Antropologia Social (CIESAS), em Guadalajara, México e co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – NEIP, comenta o papel do Brasil na produção de pesquisas sobre ayahuasca e afirma: o Brasil é vanguarda no campo.

 

Em abril, a Califórnia (EUA) recebeu a Conferência de Ciência Psicodélica (Psychedelic Science 2017), um encontro de seis dias que colocou em contato diversos pesquisadores e pesquisadoras de vários países e contextos diversos para debater a psicodelia na ciência. Em linhas gerais, como você resumiria o evento?

A conferência foi fantástica. Havia uma sensação de ser algo histórico. 2.400 pessoas foram registradas e mais 400 pessoas estiveram nos workshops, totalizando 2.800 participantes. Isso sem contar as pessoas que circularam nas partes do marketplace, que eram gratuitas e abertas. Foi a maior Conferência desse campo e a mais numericamente significativa.

O avanço dos estudos clínicos sobre o MDMA e a penetração dos resultados científicos na cultura popular têm trazido cada vez mais mídia. Cada vez mais veículos mainstream dão notícia sobre isso e há cada vez mais pessoas estudando e interessadas no campo. Existe um certo clima de que estamos em outro momento e que pode haver uma transformação das legislações, de que os estudos realmente estão evidenciando cada vez mais os potenciais terapêuticos [das substâncias psicodélicas]. Há um clima de comunidade, também, porque as pessoas que se interessam por esses assuntos não têm muitos espaços para compartilhar, não há tantos fóruns e ambientes de encontro ou figuras públicas que são referências. Não têm seus ídolos, suas figuras míticas. Essas conferências, na minha perspectiva como antropóloga, viram um ponto de encontro para trocas de experiência e de diálogo. Elas vão às conferências em parte para ver os resultados científicos, mas uma grande parte é essa community building, que quer criar laços.

A ciência psicodélica tem esses dois binômios: a parte mais científica e a parte mais ‘psicodélica’. A parte do marketplace é um exemplo disso, pois lá tinham performances, produtos, manifestações artísticas. E há também a parte científica, representada na Conferência nos andares de cima. Nas salas paralelas aconteciam os fóruns de comunidade, que diferem dos espaços de discussão sobre os papers acadêmicos e debatem os assuntos que afligem os pesquisadores ou a relação entre as práticas e a ciência, entre a pesquisa e os usuários.

Para mim foi um dos maiores momentos da minha carreira. E eu sinto que isso é produto da minha própria raça, porque eu sou estrangeira, eu sou mulher, eu sou brasileira, eu sou antropóloga. Sob todos os aspectos, eu não tinha tantas chances de estar ali.

 

Sendo uma pesquisadora brasileira, como você vê o debate da ciência psicodélica? 

O Brasil tem um papel proeminente. Estamos ocupando um espaço e servindo de exemplo e modelo. Temos muito o que ensinar. A pesquisa [sobre ayahuasca] está florescendo, é uma pesquisa de ponta e de impacto. E o mais interessante no caso da ayahuasca é que ela tem um uso popular, social e cultural que é expandido, de alguma forma. Numericamente ainda é muito pequeno, se você for comparar [o uso] como manifestação religiosa. Mas por outro lado, do ponto de vista social existem pelo menos 35 mil usuários no Brasil, o que não é pouco.

Existe uma penetração na cultura, um hábito, uma aceitação social. Isso cria um ambiente de pesquisa muito mais favorável, pois existe menos estigma, menos tabu e menos bloqueios. É evidente que ainda há preconceito, dificuldades e impedimentos burocráticos, mas nos Estados Unidos, por exemplo, existe uma paranoia: muitas pessoas não querem assumir em público que elas já tomaram, têm medo de declarar que usaram uma substância ilegal porque elas podem perder sua licença médica. Existe um medo de falar a palavra e de se referir a esses assuntos em público. No Brasil, não. Um professor pode orientar um aluno que contou que usou no final de semana a ayahuasca e os professores conversam sobre a experiência que ele teve. Isso, de alguma maneira, cria um ambiente muito mais favorável à pesquisa. O fato de que os pesquisadores podem consultar os usuários, visitar as comunidades e ter trocas cria um tipo de abordagem culturalmente mais sensível. O Brasil não só está produzindo pesquisa de ponta, como também está produzindo um tipo de pesquisa que está mais afinado com a sensibilidade cultural em torno dessas práticas.

Eu sinto que a pesquisa brasileira [de ayahuasca] tem uma vocação de ciência, de conhecimento – não necessariamente numa perspectiva comercial de criar um produto. As pessoas que estão pesquisando os potenciais da ayahuasca para depressão não têm como objetivo e ponto de partida a criação de um remédio a partir disso. O Brasil sempre teve uma pesquisa muito forte sobre ayahuasca dentro das ciências sociais. E a biomedicina não estava dando muita bola para esses assuntos. Eu, como antropóloga, fiz minha carreira em uma época em que quase não tinha nada em termos de pesquisas biomédicas com ayahuasca no Brasil, e o que se tinha era fora do país. Agora há vários estudos.

O Brasil tem muito a ensinar: a legislação brasileira que reconheceu o uso da ayahuasca foi muito pioneira. Ela é produto de um diálogo entre pesquisadores, usuários e autoridades. Esse modelo de debate conjunto e de pensar perspectivas de saúde, de direitos humanos, de tradições religiosas, de pesquisa científica, de política de drogas, é algo simples e óbvio, mas nunca é colocada em prática. Primeiro, a ideia que você consultou o usuário na hora de construir a legislação, que não foi feita de fora para dentro, mas que parte de usos, costumes e tradições para criar parâmetros de controle oficiais. O modelo de regulação da ayahuasca no Brasil é pioneiro e original, que foi exportado para outros países. Se você tem o uso religioso da ayahuasca reconhecido em países como EUA e Holanda, é porque ele foi primeiro reconhecido no Brasil. Nosso país, de novo, tem um exemplo a ser dado.

 

Você comentou que os pesquisadores da área médica no Brasil não estudam a ayahuasca pensando numa produção comercial a partir dela, mas e no resto do mundo? É um risco a cooptação dessas substâncias pela ciência médica?

Eu sou a favor da pesquisa médica e da pesquisa científica. Eu não sou a favor do monopólio médico ou do conhecimento científico. É outra forma de saber, assim como as formas de saber tradicionais, ritualísticas e xamânicas também são. Eu não acho que a ciência médica deve ser a única forma de analisar se essas substâncias são legítimas ou não, se fazem bem ou não, se elas deveriam ser legalizadas ou não. Mas por outro lado, proibir a ciência médica ou pesquisa também cai no fanatismo religioso.

Mas nos EUA, por exemplo, a ayahuasca é permitida para uso religioso por parte [de integrantes] do [Santo] Daime e a UDV. Aí todos os outros usos (xamânicos, new age, alternativos, terapêuticos, enfim) são proibidos. Se você tivesse um uso terapêutico médico autorizado, você teria outra maneira de permitir o uso, até porque nem todo mundo vai querer atrelá-lo a uma religião. Teríamos outro contexto de uso. Eu sou a favor de que existam múltiplos espaços de uso e múltiplas autorizações.

A luta antiproibicionista não é um “pode tudo”, “tudo está autorizado”. É repensar os controles. Em várias maneiras, a discussão antiproibicionista pode ser chegar a controles mais rígidos do que a gente tem hoje, por exemplo, como pensar a propaganda com remédios, pensar certos lobbies da indústria médica. A discussão antiproibicionista é sobre repensar os controles, as relações entre lícitos e ilícitos, as prioridades e as classificações que não são científicas, mas sim morais, históricas, legados coloniais, ou formas de perseguição de certas minorias e grupos sociais.

Pensar o antiproibicionismo com psicodélicos seria isso: pensar em novos tipos de controle – porque, de novo, não é algo sem nenhum tipo de controle. Dentro desses novos tipos de controle, eu sou contra o monopólio médico, mas eu sou favor do uso médico e da pesquisa científica. Eu sou favorável ao ativismo que critique esse modelo que dá acesso só para um campo, o religioso, e que contemple outras formas de religiosidade que não as grandes religiões monoteístas da humanidade, apenas.

 

Você sente que o avanço das pesquisas no campo dos psicodélicos tem a ver com a flexibilização das legislações sobre drogas ao redor do mundo? Como a proibição das drogas afeta esse contexto da ciência psicodélica? 

Existe um grande paradoxo: essas substâncias são classificadas como schedule I [as substâncias previstas nessa lista, criada a partir das convenções internacionais sobre drogas, são consideradas de alto potencial de abuso e sem fins terapêuticos]. A própria definição das substâncias exclui as suas possibilidades terapêuticas. Para mudar essas listas, é necessário ter evidências científicas de que elas não são assim. Mas para ter evidências científicas é preciso ter autorização para estudar. Se elas são proibidas, não se tem autorização. É uma espécie de círculo vicioso.

Por outro lado, os psicodélicos não são considerados importantes o suficiente para criar um debate, porque ainda é uma coisa marginal, meio elitista, numericamente não tão significativa. Geralmente não está associado à superlotação carcerária, com violência, com crises de saúde coletiva gravíssimas. Então é tido como de menor importância, em termos de políticas públicas. Essas substâncias, de várias formas, sofrem desafios extras – seja porque não são consideradas importantes o suficiente, seja por serem proibidas pelo seu ‘mais alto grau de periculosidade’.  Então toda a pesquisa sobre essas substâncias é feita no contexto da proibição. Isso afeta profundamente o campo e todo o conhecimento cientifico produzido hoje sob os psicodélicos é feito no contexto da proibição e, portanto, muito limitado.

A proibição coloca um peso insuportável sobre os pesquisadores que quiserem estudar as substâncias. Primeiro, você não tem autorização para importá-las ou para pesquisá-las. Segundo, você não tem apoio financeiro para fazer esse tipo de pesquisa. Terceiro, os pesquisadores têm medo de terem suas carreiras comprometidas e serem estigmatizados. E o mais importante de tudo é que toda a maneira de pensar a produção do conhecimento e o financiamento [das pesquisas] é feita em função da classificação das drogas. Nesse sentido, as linhas de pesquisa, os projetos costumam estudar os riscos e os problemas de saúde relacionados às drogas. Não é comum uma linha de apoio que estuda os potenciais terapêuticos, pois está ligado a essa definição de que as substâncias são nocivas e perigosas. A pesquisa oficial, a burocracia estatal, as agências e os grupos de fomento estudam os potenciais negativos. Estudar os potenciais positivos está fora do script e o acesso é muito restrito.