PBPD ENTREVISTA: INSTITUTO SOU DA PAZ

19 de julho, 2016 Comunicação PBPD PBPD Entrevista Permalink

Segundo a Constituição Federal, militares que cometerem crimes contra a vida de civis serão julgados pela Justiça comum. Entretanto, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que transfere de volta para a Justiça Militar o julgamento de agentes das Forças Armadas envolvidos nesses crimes.

Em tempos de grandes eventos, tem sido comum realocar o Exército para atuar como força de segurança pública. Um exemplo recente foi durante a Copa do Mundo, em 2014, quando o Complexo da Maré foi dominado pelas tropas das Forças Armadas. Na ocasião, foram registradas diversas violações de direitos humanos, como é o caso de Vitor Santiago, que ficou paraplégico após ser baleado por militares. Até hoje, o Ministério Público Militar não abriu inquérito para apurar o crime.

Com a proximidade dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro – e com o discurso antiterrorista se expandindo a todo o vapor Brasil afora – nos preocupa uma possível aprovação do projeto. Para entender melhor as propostas do texto e suas prováveis consequências, conversamos com Felippe Angeli, coordenador de Advocacy do Instituto Sou da Paz.

 

PBPD: O PL só trata dos agentes das Forças Armadas, ou seja, do Exército. Agentes da Polícia Militar, por exemplo, não estão contemplados no texto. Nesse sentido, quais seriam os efeitos diretos da aprovação do projeto no cotidiano das periferias brasileiras? 

Felippe Angeli: Embora a atividade policialesca e mais agressiva do Estado seja percebida com mais intensidade nas periferias, eu vejo que a gravidade dessa proposta vai muito além [da periferia em si]. Mas de fato, [a aprovação] vai acabar prejudicando essas populações periféricas, que é o que tem acontecido. Essa proposta vai contra a própria determinação constitucional que diz que crime contra a vida é julgado pela justiça comum. Tendo em vista os Jogos Olímpicos e os grandes eventos que o Brasil tem recebido, houve uma pressão por parte dos militares para que, caso assumissem a segurança de ambientes urbanos, eles pudessem ser julgados pela Justiça Militar em casos de crime contra a vida de civis. E isso cria uma segunda justiça, como se fossem duas classes populacionais: uma militar – às quais caberia algum tipo de privilégio – e todo o resto da população.


PBPD: Por que é importante que haja a separação entre Justiça Militar e Justiça Comum quando crimes dolosos contra a vida são cometidos por agentes militares?

Felippe Angeli: A Justiça Militar se organiza de outra forma. Ela é composta por militares – não necessariamente oriundos de carreira jurídica – e tanto as Forças Armadas quanto a justiça associada a elas se baseiam na lógica do combate e não a lógica da cidadania. A Defesa existe para defender o país de ameaças externas ou de grandes momentos de convulsão nacional e social. No cotidiano e na normalidade, o que deve prevalecer, obviamente, são as leis do país dentro da sua justiça comum – formada por cidadãos. Afastar a normalidade jurídica por uma situação excepcional gera um estado de exceção. Isso é algo que não cabe numa sociedade democrática na vigência da sua ordem constitucional.

PBPD: O pretexto atual para a aprovação desse projeto de lei são os Jogos Olímpicos. Hoje, o terrorismo é o novo argumento para o endurecimento das leis e suspensão dos direitos. Nesse sentido, como a guerra às drogas se encaixa nesse PL?

Felippe Angeli: Esse é um tema relevante, porque apesar de o debate – quer dizer, pseudo-debate, pois a proposta caminhou a jato na Câmara – citar em tese a questão dos Jogos Olímpicos, o fato é que o projeto de lei da forma em que ele existe hoje não se circunscreve a esses grandes eventos. Na verdade, [a ocupação militar] restaria como uma lei a partir de então. Além da questão inconstitucional, o projeto por si só é muito danoso. No caso das drogas, a gente vê com certa constância que, de fato, existe uma atuação por parte da segurança – e, no caso, as polícias – muito mais agressiva nas periferias e muito associada à questão do comércio varejista de drogas – a pequena quantidade, o pequeno traficante. Em situações como as dos Jogos Olímpicos, em que as Forças Armadas podem assumir a segurança de qualquer região, basicamente quer dizer que você tem o Exército atuando enquanto força de segurança pública civil, mas em caso de qualquer abuso ou em qualquer situação em que ele tenha usado a força para exercer essa política de segurança, não seria a justiça comum, a justiça do Estado, a averiguar se a ação foi legítima ou se foi abusiva. E certamente terá um impacto nas comunidades em que a questão do tráfico de drogas é um grande problema, levando em conta o contexto proibicionista em que a gente vive. E a aprovação desse projeto poderia a levar uma impunidade para esses agentes do Exército incumbidos da segurança.

 

PBPD: É possível que o Exército passe a atuar ostensivamente nas comunidades brasileiras após os Jogos?

Felippe Angeli: Isso já acontece. Durante a Copa do Mundo, as Forças Armadas foram chamadas para ocupar o Complexo da Maré para atuar como força de segurança pública. E depois, pelas próprias condições e características daquela região do Rio de Janeiro, não foi possível que o Exército saísse. Por fim, [a situação] se torna quase que uma armadilha para as Forças Armadas, pois uma vez que elas interferem nesse tipo de conflito urbano, além de elas não terem o preparo necessário para atuar nesse tipo de situação, os agentes acabam se colocando numa situação em que para você se retirar também é muito difícil.

PBPD: Levando em conta o fortalecimento da bancada da bala e dos discursos reacionários, você acredita que esse projeto tem respaldo da sociedade? 

Felippe Angeli: É muito difícil dizer isso, até pela velocidade com que ele tem tramitado. Houve, de fato, uma grande pressão por parte das Forças Armadas. E eu entendo que isso faz parte de um jogo político: não existe previsão por parte do ordenamento jurídico de que as Forças Armadas se responsabilizem pela segurança pública cotidiana – muito menos pela segurança pública urbana. Tendo em vista a situação da segurança pública no Rio de Janeiro, as questões fiscais que estão se verificando por lá e a chegada de um evento internacional com grande visibilidade, houve esse pedido para que o Exército assumisse a segurança pública em algumas situações. Pra se proteger, eles buscam esse tipo de acordo. Mas com a pressão das Forças Armadas, que obviamente têm um grande poder de equivalência no Congresso, e com a chegada do evento em brevíssimo tempo, fizeram esse projeto caminhar a toque de caixa, o que impede uma discussão mais ampla e não permite que a opinião pública se posicione frente a essa proposta. O fato é que isso, de qualquer modo, vai contra o que determina a própria Constituição Federal. Um dos grandes problemas desse projeto é justamente porque não está sendo realizado o devido debate com a participação de setores mais amplos da sociedade.