PBPD ENTREVISTA: PRISCILLA GADELHA

5 de agosto, 2016 Comunicação PBPD PBPD Entrevista Permalink

Apesar de ter sediado o Encontro Nacional de Coletivos e Ativistas Antiproibicionistas (ENCAA) em junho, Pernambuco vive hoje um cenário de incertezas – e possíveis retrocessos – em relação à política de drogas estadual. Os frequentes anúncios de mudança na gestão da política de drogas, que pode ser conduzida por representantes das comunidades terapêuticas, têm mobilizado a rede antiproibicionista pernambucana.

Para explicar esse cenário, conversamos com a psicóloga Priscilla Gadelha, coordenadora técnica do Programa Atitude, Presidente do Conselho Estadual de Política sobre Drogas (CEPAD) e da Rede Nacional de Mulheres Feministas Antiproibicionistas.

PBPD: O que é o Programa Atitude?

Priscilla Gadelha: É um programa de atenção integral aos usuários de droga e aos seus familiares. Foi criado em 2011, posterior ao plano piloto de 2010, o CRAUD. O Atitude nasce como um elemento central da política de drogas em Pernambuco e atua na prevenção aos crimes – porque a gente tinha um cenário de muitas mortes relacionadas à violência do tráfico de drogas. O programa é, então, um braço da segurança pública dentro do Pacto pela Vida. Quando o Atitude nasce, ele começa com proposta inovadora de cuidado, inserida no contexto da segurança, mas com o viés da assistência social. Ele é acompanhado dos princípios da redução de danos, em que foco não é a busca da abstinência, mas sim a promoção da qualidade de vida. E um ponto muito específico [da criação do programa] era manter a vida das pessoas, já que o cenário era marcado pela morte de usuários de crack, que além do uso, morriam nas atividades com o tráfico. Nesse cenário, o Atitude nasce dentro de um universo proibicionista, mas com um viés antiproibicionista, já que a perseguição [do projeto] não é o uso das substâncias, mas sim a proteção à vida. O Atitude é um programa de redução de vulnerabilidades e também atua na diminuição do encarceramento de usuários de droga, já que a gente também promove essa discussão com os beneficiários do programa.

PBPD: Como o programa é dividido?

Priscilla Gadelha: Ele é dividido em quatro modalidades: Atitude nas Ruas, Atitude Centro de Acolhimento e Apoio, Atitude Centro de Acolhimento Intensivo e aluguel social. O Atitude nas Ruas é o equipamento que vai para o território, promovendo uma intervenção direta com os grupos nas cenas de uso. Ele funciona de forma itinerante nas ruas e praças da cidade, promovendo articulação com a rede e estratégias de redução de danos. Já o Centro de Acolhimento de Apoio é um espaço de “portas abertas”, funcionando como uma casa de passagem: com acolhimento, banho, alimentação, pernoite, atividades educativas, atendimento psicológico, assistência social – e funciona durante 24 horas. Dessa forma, a pessoa atendida pode pernoitar dependendo da avaliação do cenário de risco, potencializando o objetivo do Atitude de proteger pessoas que estão com risco de vida. O Acolhimento Intensivo é acompanhado pela proteção integral: a pessoa precisa passar um tempo fora do seu território (em média entre 2 a 6 meses), com proposta de reinserção social e educativa. Temos no acolhimento intensivo espaços mistos e um acolhimento específico para mulheres (com filhos recém-nascidos que podem ficar juntos durante esse período de cuidado). Nessa etapa intensiva é onde se trabalha as potencialidades da pessoa para o retorno ao território, que pode ser o de origem ou um novo local. E o quarto braço do Atitude é o aluguel social, um mecanismo bem específico de moradia para a reinserção social. Existe a proposta de morar sozinho, com a família ou até mesmo em formato de república. O pré-requisito para ser contemplado nessa política é estar em processo de inserção no mercado de trabalho – formal ou informal – e aceleração da escolaridade. Nesse espaço existe um acompanhamento das equipes de forma sistemática, mas não invasiva, já que entendemos que aquele é o cantinho dele.

Temos tido bons resultados com essa política. Mas hoje sua continuidade não é certa.

PBPD: Estamos diante de um novo redesenho político. O cenário antiproibicionista de Pernambuco chegou a ser afetado por essas mudanças institucionais?

Priscilla Gadelha: Aqui em Pernambuco a gente tinha até então um cenário de muita escuta dos movimentos sociais. A proposta da redução de danos está muito enraizada. A Prefeitura de Recife, há anos atrás, abriu concurso público para redutor de danos e isso fortaleceu consideravelmente a pauta e ampliou a rede [de saúde e de assistência]. Nesse cenário, as pessoas que conduziam a gestão da política de drogas eram ligadas à saúde mental e à assistência social.

No entanto, devido às articulações políticas envolvendo as eleições municipais, diversos acordos foram firmados. E a política de drogas entrou nesse rolo. Hoje vivemos a expectativa do que acontece nas articulações partidárias, que no momento atual fervem para as eleições municipais que estão na porta. Temos receio, sim, que grupos conservadores, ligados à manutenção da guerra às drogas, que alimenta modelos contrários ao SUS e ao SUAS tenham interesse em assumir e mudar o formato que conquistamos na política de drogas. Não aceitamos acordos em troca das pastas das políticas públicas.

Quando o [novo] nome surge, a rede e o CEPAD (Conselho Estadual de Política sobre Drogas) se mobilizam, solicitando audiência com o até então indicado a assumir a pasta, André Sena – uma indicação de representantes das comunidades terapêuticas e da bancada evangélica. Um dia antes da reunião extraordinária agendada pelo conselho, todas as agendas foram canceladas, afirmando que não seria mais indicado para assumir a secretaria.

Quinze dias depois surge outro nome para assumir a pasta de política de drogas no Estado: Cloves Benevides, também ligado às comunidades terapêuticas. E aí surgiu um novo burburinho, porque a gente não vai permitir uma mudança no formato de como a gente vai conduzindo a gestão da política de drogas em Pernambuco. Entendemos que trabalhamos com conferências, com um conselho muito ativo, com a participação de movimentos sociais e com uma rede guerreira, que por mais fragilizada que esteja, é muito aquecida ao que se propõe: na defesa da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), na defesa do sistema público de saúde e assistência social e na intersetorialidade das pautas. E aí quando esse nome surge, a rede se mobiliza novamente e faz uma leitura do que é que está vindo por aí.

PBPD: E o que vem por aí?

Priscila Gadelha: É óbvio que a gente tem que relacionar [as mudanças] com o cenário federal: quando se muda a SENAD para uma proposta militar e com um ministro [da Justiça] que recentemente apareceu num vídeo cortando pés de maconha, isso fala, sim, de uma mudança considerável no que a gente vinha trabalhando no estado até então, baseado na ampliação do debate, redução de danos, qualidade de vida. Vemos sim uma ameaça possível, que pode trazer mudanças catastróficas e profundas, nos trazendo bastante receio.  O que a gente teme é que toda essa proposta do programa Atitude possa se mudar para uma proposta única [fortalecimento das CTs], como a gente vê em outros estados. A gente não pode permitir que isso destrua uma rede de atenção psicossocial construída por muitos trabalhadores e trabalhadoras, usuários e usuárias.

PBPD: Como a sociedade civil tem se articulado para barrar esses retrocessos?

Priscilla Gadelha: A sociedade civil vem se mobilizando nas ruas. Recentemente tivemos o Encontro Nacional de Coletivos e Ativistas Antiproibicionistas (ENCAA), que pelas coincidências do destino aconteceu num momento bem delicado na política de drogas. Durante o Encontro, foi reforçada a necessidade de falarmos do antiproibicionismo no Brasil todo de uma maneira mais ampla, com os mandatos, nos espaços da rua e institucionais. E pensando num cenário local, o CEPAD pensou em fazer o CEPAD na Rua: em vez de fazermos as discussões somente no espaço institucional, vamos fazer todo mês uma fala aberta nos territórios sobre as mudanças e retrocessos na política de drogas e nas políticas socioassistencias, falando com a população. Além disso, o Coletivo Antiproibicionista de Pernambuco (Cape Mujica) vai fazer uma Marcha da Maconha “alternativa” em agosto para falar sobre política de drogas e sobre a guerra às drogas, alarmando e provocando sobre a necessidade de mudança urgente no paradigma sobre drogas no Brasil.

PBPD: Como você descreveria a cena antiproibicionista em Pernambuco?

Priscilla Gadelha: Ela está “bombando”. Aqui a cena antiproibicionista é bem forte e se fortaleceu localmente e nacionalmente após o ENCAA. Em Pernambuco, temos uma discussão de um tempo, por conta da redução de danos e da Marcha da Maconha. O CEPAD (Conselho Estadual de Política sobre Drogas), por exemplo, tem duas vagas para usuários, tem vaga para representantes da redução de danos e também para movimentos sociais. Estamos bem articuladas! Uma proposta que saiu do ENCAA foi a ampliação do debate [sobre a política de drogas] para outros espaços, dialogando com as pessoas que estão sofrendo diretamente com essa política proibicionista. Um exemplo é a Comunidade dos Coelhos, em Recife, que é marcada historicamente por problemas relacionados ao tráfico e do uso intenso de diversas drogas. Queremos potencializar os espaços e incentivar o debate sobre drogas, promovendo empatia, cuidado, escuta, acolhimento e vínculo.

PBPD: Para além da ampliação do debate sobre drogas, qual foi o grande legado do ENCAA?

Priscilla Gadelha: No ENCAA criamos um GT sobre feminismo, que contou com a participação de mulheres de diversos lugares do Brasil. Criamos a Rede Nacional de Mulheres Feministas Antiproibicionistas, que trará um viés bastante específico das necessidades de mudanças na política de drogas com esse recorte de gênero. Entendemos que nós, mulheres, somos as pessoas que mais vêm sofrendo com esse cenário, pois estamos sendo massivamente encarceradas. Há uma quantidade absurda de mulheres que estão presas por conta de atividades do tráfico de drogas ou simplesmente porque têm um companheiro envolvido nessas atividades. E elas, por vezes,  não têm nem escolha, nem direito à defesa. Não existe o tratamento dado as mulheres e quando se fala nas que estão privadas de liberdade, a negligência é absurda. É importante falar das mulheres prostitutas, das mulheres trans, todas devem ser incluídas dentro do debate antiproibicionista. Precisamos falar sobre mulheres e drogas, trazê-las para um espaço de potência política, para que elas – ou melhor, nós todas – possamos falar. E, principalmente, trazer para a discussão todas as mulheres que vêm sofrendo e vêm necessitando urgentemente de uma real mudança de paradigma na política de drogas no Brasil. Vamos nos articular não só nacionalmente, mas também com toda a América Latina, entendendo que o continente é o que mais sofre com esse cenário. Nós somos povos tradicionais e guerreiros. E não será a moral, a ignorância ou o juízo de valor que vai determinar como a gente vai viver, como é que a gente vai se cuidar e o que é que a gente vai usar. Nosso corpo é livre e é livre para a gente viver e usar o que a gente quiser. E para isso, precisamos de qualidade de vida, informação e direitos garantidos.