Pela descriminalização de todas as drogas, inclusive, do crack

Por Taniele Rui e Fábio Mallart
25 de fevereiro de 2010. Em mais uma operação da Polícia Civil na chamada “cracolândia”, no bairro da Luz, em São Paulo, foram abordadas cerca de 200 pessoas que estavam no local, em sua maioria usuários e usuárias de crack. Ao todo, 32 indivíduos foram indiciados sob a acusação de promover o tráfico de drogas na região ou de agir em associação ao narcotráfico, alguns deles permanecendo detidos por cerca de um mês no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros IV, outros, no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros II. Dessa “prisão no atacado”, para usar os termos da sentença proferida pelo juiz, de todos os acusados, apenas uma mulher, que permaneceu cerca de sete meses no Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha, foi denunciada sendo, posteriormente – devido à inconsistência das provas produzidas e das versões díspares apresentadas pelos policiais na audiência – absolvida.
Como se observa, uma única operação da Polícia Civil resultou na prisão de 32 consumidores de crack. Estes permaneceram encarcerados provisoriamente, logo depois sendo devolvidos às ruas, ou melhor, à região da cracolândia. Num decisivo momento político, em que o STF julga a inconstitucionalidade do porte de drogas para consumo pessoal, se mostrando favorável apenas à descriminalização da maconha, retomamos essa história inacreditável – sobretudo por ser recorrente – para elucidar a importância da descriminalização de todas as substâncias, inclusive do crack. Tal qual ela nos conta, usuários de crack têm sido apreendidos, acusados inconsistentemente de tráfico, sendo alvos principalmente da modalidade prisão provisória. As implicações perversas dessa engrenagem são visíveis na constatação empírica de que a experiência prisional está cravada em boa parte das trajetórias desses sujeitos e, por consequência, em todos os espaços pelos quais eles circulam.
Cientes disso, afirmamos enfaticamente que a descriminalização do consumo apenas da maconha em nada alterará esse quadro.
Como aqueles 32, são milhares os usuários de crack que todos os meses adentram prisões, unidades de internação da Fundação CASA e hospitais de custódia, de modo que procedimentos internos a essas muralhas já foram desenvolvidos: em São Paulo, o crack foi circunscrito em cadeias sob a égide do PCC; e funcionários dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico viram o público dessas instituições se alterar significativamente nos últimos anos com a chegada de levas de usuários da droga. Muda-se o público, justifica-se uma outra lógica de segurança, na qual o ambiente, pouco a pouco, vai sendo alterado: mais cercas, mais câmeras, mais revistas.
Na outra ponta do processo, são também milhares os usuários que, presos e reclusos por poucos meses, são devolvidos mensalmente às ruas, às cracolândias, aos albergues, às Comunidades Terapêuticas, aos CAPSad. Eles entram e saem desses espaços, num movimento incessante e frenético, muito bem definido por um usuário da droga como “ping-pong”. Esse entra e sai, de tão repetitivo e constitutivo de suas vivências, ao invés de contê-los, faz exatamente o oposto: conecta, ainda com mais intensidade, o dentro e o fora dessas instituições. Eis aqui a potencialidade do mecanismo da prisão provisória que, se por um lado, se constitui como instrumento de gestão de territórios urbanos, por outro, opera como uma verdadeira máquina de pulverização de toda uma gramática prisional que se dissemina pelo tecido social urbano.  
Curioso observar, nesse sentido, que o voto do ministro Luís Roberto Barroso ataca a guerra às drogas e a superlotação penitenciária, mas insiste na imagem de que “o crack transforma as pessoas em corpo sem alma” – o que revela que os nefastos desdobramentos das prisões provisórias sobre os usuários de crack, e sobre a dinâmica social de modo geral, não parecem ser compreendidos. Mais amplamente, o titubeio discursivo revela também que o judiciário, longe de ser uma instância de produção da neutralidade, da equidade e da justiça, na prática pode propagar e reificar o “pânico moral” que acompanha a fala e o imaginário públicos sobre o crack, ignorando o conteúdo de crescentes pesquisas quantitativas e qualitativas que insistem na direção contrária.
Se insistir em se manter tímido em sua votação, o STF seguirá cúmplice do cruel mecanismo que produz, com violência, uma população extremamente precária, muitas vezes matável, condenada a circular por toda a vida entre a rua e as instituições de assistência e cuidado, de punição e controle; seguirá cúmplice, portanto, do mecanismo que produz vidas incapazes de se emanciparem de tantos aparatos de gestão.