A Plataforma Brasileira de Política de Drogas, rede composta por 44 organizações não governamentais, núcleos de pesquisa, coletivos e associações de diversos campos de atuação, vem manifestar extrema preocupação quanto às declarações do prefeito eleito na cidade de São Paulo, João Doria Jr., acerca das estratégias de cuidado com a população que se encontra em acentuada vulnerabilidade social e que faz uso problemático de drogas, especialmente aquelas que frequentam e residem na região do bairro da Luz conhecida como “cracolândia”.
Em diversas ocasiões, o então candidato expressou de forma inequívoca sua intenção em acabar com o programa “De Braços Abertos”, criado em 2014 pela prefeitura do município de São Paulo. A fala reproduzida a seguir é clara quanto aos seus planos:
“Primeiro, nós não vamos continuar com o programa Braços Abertos, não é um bom programa para a cidade. Nós vamos adotar o programa Recomeço, que o governo do Estado realiza nesta área, com a participação de duas secretarias: a de Promoção Social e da Saúde. Este programa propõe a internação daqueles que são vítimas do crack, que são psicodependentes, para que eles nesta internação, com tratamento clínico, eles podem ficar afastados das drogas”.
Uma atuação planejada e coordenada que integre as ações dos governos estadual e municipal é, sem dúvida, salutar. No entanto, deve-se abandonar uma estéril disputa de protagonismo por ambos os programas e fundamentar a escolha das melhores estratégias para lidar com essa população em situação de extrema vulnerabilidade em evidências técnicas e científicas, além de um debate político e democrático com os residentes e frequentadores da região.
Em 2015, o “De Braços Abertos” foi avaliado por uma pesquisa independente realizada pela própria Plataforma Brasileira de Política de Drogas – que apurou, entre outros dados, impacto muito positivo do programa na vida de mais de 90% dos(as) beneficiários(as), que tiveram, pela primeira vez, direitos mínimos assegurados, como moradia, alimentação, trabalho e renda. Embora tenha apontado também imperfeições e desafios do “De Braços Abertos”, a pesquisa confirmou seu pioneirismo em aplicar formas de reinserção e tratamento baseados em evidências científicas e na promoção de direitos humanos.
Qualquer iniciativa que venha a criminalizar usuários de drogas, a tratá-los como caso de polícia ou, ainda, se apoiar na internação compulsória fora dos casos excepcionais já previstos na legislação deve ser repudiada. A avaliação sobre os(as) beneficiários(as) do “De Braços Abertos” confirmou que a imensa maioria tenha passagens pelos sistema prisional, numa clara indicação de que o encarceramento é um agravador da vulnerabilidade.
O Programa Recomeço, por ser baseado exclusivamente na internação em comunidades terapêuticas, está em desacordo com o conhecimento contemporâneo sobre o cuidado e o tratamento das pessoas que fazem uso problemático de drogas, que defende intervenções de saúde diversas e multifatoriais. Depois de mais de três anos em execução, o Programa Recomeço não passou por nenhuma pesquisa de avaliação, nem mesmo apresentou nenhum dado sobre as entidades privadas que recebem os recursos públicos para internar dezenas de milhares de pessoas. Reiteramos nossa incompreensão com o abandono de um programa que, não obstante seu pouco tempo de existência e da óbvia necessidade de aperfeiçoamento, é bem avaliado e despertou grande interesse internacional em favor de uma estratégia que tem na internação a única alternativa de cuidado e que ainda não passou por nenhum tipo de avaliação.
A população que faz uso de drogas na região da “cracolândia”, assim como em outras regiões da cidade, é alvo de violações históricas de seus direitos fundamentais. Assim, demandamos ao prefeito eleito que as políticas municipais sobre drogas tenham como pilares básicos a promoção da saúde, o respeito aos direitos humanos e a integração de políticas para o cuidado, em especial as de saúde e de assistência social. A extinção abrupta o “De Braços Abertos” em nada colabora com o que se espera de uma política de drogas, a saber: que seja justa, solidária, racional e científica.
Colocamo-nos à disposição para auxiliar a nova administração municipal a atingir esses objetivos.
São Paulo, 6 de outubro de 2016