Nota sobre ação policial na Cracolândia, em São Paulo

Na mesma noite da mais esvaziada virada cultural que o Centro de SP já assistiu, a Polícia Civil invadiu a cracolândia.

A questão do tráfico é complexa, havia operações na região que exigiam, sim ações policiais. No entanto, não faltam evidências de que a situação dos moradores e consumidores de drogas que habitam a região não é positivamente impactada por mega-operações policiais. Está claro, então, que esse não é o objetivo do governo do Estado e do município.

O prefeito, depois de meses se equilibrando entre falas que seus secretários diziam ser mal interpretadas, agora não permite mais duplo sentido: disse aos microfones que o Programa de Braços Abertos está encerrado, os hoteis serão fechados, os “psicodependentes” serão internados e os moradores de rua “assistidos”.

Estive presente em uma reunião na qual o Ministério Público pediu esclarecimentos à Prefeitura sobre o projeto Redenção, que provocava receios na sociedade civil e no Conselho Municipal de Política sobre Drogas e Álcool, que sequer havia sido consultado. Nessa reunião, questionado pelos promotores sobre os rumores de que haveria uma invasão, um dia “D” na cracolândia, o secretaria do governo Julio Semeghini foi enfático em garantir que eram boatos e que isso não aconteceria.

O secretário de saúde, Wilson Pollara, depois de uma fala pouco cuidadosa, para dizer o mínimo (o uso do termo “aidético” por um médico em um cargo tão relevante me parece um péssimo sinal), garantiu que nada seria feito fora dos protocolos consensuais da medicina. Foi seguido pelos seus técnicos presentes, que apresentaram slides recheados de evidências europeias e garantiram que internações são excepcionais para casos graves. O secretário, então, afirmou que, caso elas ocorressem, não seriam em comunidades terapêuticas. Muitas das falas da sociedade civil naquela reunião, expuseram a mesma preocupação: as experiências anteriores na cracolândia usaram uma roupagem científica para encobrir seu verdadeiro objetivo: “limpar a região”

Infelizmente, foi o que aconteceu, de novo. Por mais assustador que possa parecer, é possível discutir a legitimidade política do objetivo de “limpar a região e devolvê-la à cidade”. O que não é mais aceitável é envernizá-lo com a aparência de “política pública de cuidado e atenção” para quem mora e transita por ali, evocando as “evidências científicas de ponta”, enquanto o prefeito e o governador colocam data para que a imprensa e os eleitores “não vejam mais as cenas deprimentes da cracolândia”.

Sigo sem recusar o debate com quem quer que seja. Só não é mais possível discutir política de drogas fingindo que a palavra política não está presente, prática comum, e extremamente danosa, de inúmeros especialistas nesse tema”.

* Por Maurício Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas