A Cannabis spp. é utilizada para fins terapêuticos há milhares de anos, com registros históricos dessa prática datados de mais de 2 mil a.C., na Ásia Central. No final do século XX, as pesquisas sobre o uso terapêutico da planta ganharam novo fôlego com a descoberta do sistema endocanabinoide, responsável por influenciar processos metabólicos e fisiológicos do corpo humano. Os canabinoides mais conhecidos e mais abundantes da maconha, o ?9-tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), interagem diretamente com esse sistema, que pode ser reequilibrado em caso de deficiência ou disfunção.
Têm se acumulado evidências robustas (em anexo) de que a maconha pode ser utilizada com êxito no tratamento de uma ampla gama de doenças e sintomas, a exemplo de doença de Alzheimer, autismo, câncer (sintomas e causas), dependências, doença de Parkinson, doenças gastrointestinais (Crohn, Colites), dores crônicas, epilepsia, esclerose múltipla, espasmos musculares, insônia, náusea e vômitos (durante quimioterapia e tratamento para AIDS) e neuropatias.
Nenhum dogma, crença ou interesse pode se sobrepor à obrigação do Estado brasileiro de garantir o direito à saúde a todos, de modo universal e igualitário, nos termos do art. 196 da Constituição Federal. O Estado viola um dever jurídico, portanto, ao criar barreiras para que um paciente tenha acesso ao tratamento com base em cânabis, quando adequado ao seu caso.
A mobilização de pacientes e de suas famílias vem conquistando o paulatino reconhecimento desse direito por parte do Poder Judiciário, nos últimos anos. Em cumprimento a decisões judiciais, a Anvisa definiu, em Resoluções de 2015 e 2016, procedimentos e critérios para que pessoas físicas importem medicamentos à base de THC e CBD, para uso próprio, mediante prescrição médica.
O preço notoriamente elevado da importação desses medicamentos torna-os inacessíveis, no entanto, para grande parte das famílias que dependem deles. Tampouco se justifica que o Estado arque por tempo indefinido com esses custos, quando há uma alternativa muito mais simples, barata e eficaz: a do cultivo da Cannabis spp. no Brasil, com produção nacional dos medicamentos dela decorrentes. É preciso facilitar e incentivar, ademais, a pesquisa e a inovação sobre os usos terapêuticos da planta, segundo prescreve a Constituição (art. 200, V), que atribui ao Sistema Único de Saúde o mister de “incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação”. Não se sustenta que o Brasil reduza-se à posição de país dependente da importação de medicamentos à base de cânabis, quando tem todas as condições para desenvolvêlos e produzi-los aqui, associados ao cultivo do vegetal em território nacional.
Ao propor estas duas Consultas Públicas, a Anvisa dá um passo adiante, portanto, para a concretização do direito à saúde, mas também da soberania nacional, princípio da ordem econômica (Constituição Federal, art. 1º, I, e art. 170), e dos mandamentos de eficiência e economicidade que vinculam a administração pública (Constituição Federal, artigos 37 e 70). Ao mesmo tempo em que cumprimentamos a Anvisa por esta necessária iniciativa, observamos que as propostas de regulamentação submetidas à Consulta padecem de alguns graves vícios, e carecem de importantes aperfeiçoamentos.
Acerca da Consulta 654/2019, sobre o registro e monitoramento de medicamentos à base de Cannabis spp., seus derivados e análogos sintéticos, argumentaremos, em síntese, que admitir o registro de medicamentos (i) apenas quando administrados via oral e (ii) exclusivamente para doenças debilitantes graves sem alternativa terapêutica implicaria grave dano à garantia do direito fundamental à saúde, à dignidade e à liberdade dos pacientes.
Identificamos quatro problemas fundamentais na proposta de Resolução submetida à Consulta 655/2019, que regulamenta o cultivo da Cannabis spp. para fins medicinais e científicos: (i) as exigências desarrazoadas de segurança, que aumentarão consideravelmente os custos do cultivo, tornando os medicamentos mais caros, menos acessíveis, além de gerar tendência de maior impacto ambiental, devido à proibição do cultivo em área externa; (ii) a inexistência de disciplina específica, com exigências simplificadas, para viabilizar o cultivo associativo, ou por pequenos produtores, a exemplo do que ocorre em outros países; (iii) a vedação à manipulação de produtos e medicamentos à base de cânabis, por parte de farmácias de manipulação e (iv) a exigência de certidão negativa de antecedentes criminais para as pessoas responsáveis pelo cultivo, ou para trabalhar nele, o que, além de inconstitucional, produz nova exclusão de grupos sociais discriminados e comunidades vulnerabilizadas pela “guerra às drogas”, discurso legitimador da criminalização sistêmica da população negra, pobre e periférica.
Esperamos que o processo de abertura às contribuições da sociedade conduza ao aperfeiçoamento das minutas de Resolução apresentadas. Sanar os vícios apontados é fundamental para que se caminhe rumo a uma regulamentação justa e eficaz para promover com efetividade o direito fundamental à saúde, missão institucional da Anvisa.
Passamos a expor em detalhes, a seguir, os argumentos sobre cada um dos itens apontados.