Na abertura do lançamento da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, o Secretário Executivo da PBPD proferiu um discurso que diz muito sobre os valores e princípios que defendemos. Segue o discurso na íntegra:
Muito boa noite a todos.
Hoje vivemos uma noite muito especial.
É com muito orgulho que lançamos hoje a nossa Plataforma Brasileira de Política de Drogas. E não haveria lugar mais apropriado para isso do que a quase bicentenária Faculdade de Direito do Largo São Francisco, alma mater das liberdades, morada da amizade e da alegria.
São diversos os caminhos que nos trouxeram a este momento histórico. Muitos caminhamos juntos há tempos. Com outros, ainda estamos acertando o passo para seguirmos juntos ao mesmo destino. E ainda queremos encontrar outros para fortalecer nossa caminhada, porque temos certeza de que já não é possível ignorar a situação trágica que vivemos. Todos. Os que usam e também os que não usam drogas.
Somos moradores e moradoras de favelas e das periferias que convivem com a morte de familiares e amigos em uma guerra cujo sentido não se pode compreender. Somos médicos e médicas que querem tratar pacientes com o remédio adequado para suas enfermidades. Somos militantes de movimentos sociais na luta contra o genocídio da juventude, principalmente da juventude negra, nas cidades brasileiras. Somos cientistas cujas pesquisas com substâncias ilegais estão interditadas pela guerra ás drogas e que percebem que os males causados pela proibição são muito maiores do que aqueles que as drogas podem causar. Somos usuários e usuárias de drogas ilícitas que não aceitam a tutela autoritária e hipócrita do estado sobre corpos e mentes, que não aceitam a exposição a um mercado clandestino de drogas sem nenhum controle sanitário, que não aceitam os abusos policiais. Somos profissionais de saúde e ativistas antimanicomiais que percebem que os usuários problemáticos de drogas são alvo de tratamentos desumanos e cruéis, centrados no encarceramento e no interesse mercantil. Somos cientistas sociais que identificam na guerra às drogas uma guerra contra os mais pobres e os grupos historicamente discriminados. Somos os growers que rompem os vínculos com o crime organizado por intermédio do autocultivo e que sofrem implacável perseguição por parte dos agentes da repressão estatal. Somos os negros e negras que moram nas periferias e que ao serem flagrados com drogas são enquadrados como traficantes, a despeito da pequena quantidade da substância apreendida. Somos as mulheres que carregam drogas em seus corpos nas visitas a parentes e amigos presos e que acabam presas também. Somos aqueles chamados de “zumbis” nos lugares degradados das cidades, cujas vidas de sofrimento e privação são esquecidas para que simplisticamente nos vejam como vítimas de uma substância. Enfim, somos todos os cidadãos e cidadãs que sofrem com o crime e com a corrupção e que vêem policiais matarem e morrerem sem alterar em nada o mercado de drogas ilícitas.
Queremos conviver pacificamente com substâncias capazes de alterar a consciência ordinária. Queremos um cenário de regulação responsável para as substâncias capazes de causar prejuízo à saúde. Queremos informações verdadeiras e cientificamente embasadas, aptas a educar a população respeito do consumo de drogas. Queremos que o usuário de drogas seja visto não como um doente, mas como um sujeito de direitos.
Uma política de drogas deve garantir e promover direitos, não excluí-los. Por isso combatemos a massificação da internação forçada para usuários problemáticos e repudiamos o repasse de recursos públicos a comunidades terapêuticas e religiosas. Basta de uma política de drogas bipolar, que demoniza uma substância com comprovadas propriedades terapêuticas, como a cannabis, e negligencia os danos causados pelas bebidas alcoólicas, cuja propaganda é, ainda hoje e inacreditavelmente, permitida, estimulando o consumo desta substância extremamente perigosa e que pode inclusive levar à morte por overdose.
A Plataforma Brasileira de Política de Drogas surge como construção essencialmente coletiva em função desta realidade que precisa ser transformada. Temos a missão de fortalecer todos os atores que se percebem afetados pela política de drogas atual e que lutam por mudanças. Resultado de uma articulação que vem sendo feita nos últimos anos, reunimos organizações de todo o país e que atuam em diferentes áreas, saúde, justiça, direitos humanos, redução de danos, combate ao racismo, ao machismo, à homofobia. Ajudamos a organizar o Congresso Internacional de Drogas, em 2013 e percebemos a importância de articular uma ação conjunta que potencialize a atuação de nossos membros. Percebemos também que o Brasil precisa ser parte do movimento global de questionamento do paradigma proibicionista e da insana guerra às drogas e que temos uma chance importante na reunião exclusiva da Assembleia da ONU sobre o tema que acontecerá no ano que vem, a UNGASS 2016. Contamos, para isso, com a parceria de membros da Plataforma, como a Conectas, a Reduc, a ABGLT e o Instituto Igarapé. Também fazem parte da Plataforma: Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidade Associadas (CRR/FCE/UNB); Instituto Terra, Trabalho E Cidadania (ITTC); Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos (ABESUP); Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT); Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD); Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA); Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME); Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO); Associação Juízes para a Democracia (AJD); Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES); Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID-UNIFESP); Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC) da Universidade Cândido Mendes; Conectas Direitos Humanos; Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP); Growroom; Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da UFRJ; Grupo de Trabalho do Programa Álcool, Crack e outras Drogas da Fundação Oswaldo Cruz; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD); Instituto Igarapé ; Instituto Sou da Paz; Rede Pense Livre; Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos da UNICAMP (LEIPSI); Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP); Observatório baiano sobre Substâncias Psicoativas (CETAD); Plantando Consciência; Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (PROAD-UNIFESP); Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC); Rede Cidade Fala; Rede Latinoamericana de Pessoas que Usam Drogas (LANPUD). Fazem parte do Conselho Consultivo da Plataforma: Antonio Lancetti; Antonio Neri; Aldo Zaiden; Beatriz Vargas; Bia Labate; Dartiu Xavier da Silveira; Denis Russo Burgierman; Edward Macrae; Elisaldo Carlini; Henrique Carneiro; Ilona Szabó; José Henrique Torres; Julita Lemgruber; Luciana Boiteux; Luiz Eduardo Soares; Maurides Ribeiro; Maria Rita Kehl; Paulo Amarante; Salo de Carvalho; Sidarta Ribeiro; Sueli Carneiro; Sérgio Salomão Shecaira.
E hoje temos também o lançamento em São Paulo da campanha “Da proibição nasce o tráfico”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes, sob a liderança de Julita Lemgruber. A campanha, realizada por meio de cartoons dos mais importantes cartunistas brasileiros, chama à atenção para a irracionalidade da guerra às drogas. No Rio de Janeiro, os cartoons foram exibidos nos ônibus por aproximadamente um mês. Em São Paulo, os ônibus começaram a circular com os cartoons no dia de ontem, mas hoje Julita recebeu uma ligação da empresa que comercializa propaganda em ônibus intermunicipais, informando que os cartoons serão retirados dos ônibus porque fazem apologia às drogas. Parece piada, mas não é. É censura gerada pela ignorância que se alimenta da intolerância proibicionista. Alguém já disse que no Brasil o realismo fantástico não pegou porque a realidade faz concorrência desleal.
Outro exemplo clássico: em São Paulo, a Marcha da Maconha, realizada todos os anos em mais de quinhentas cidades ao redor do globo, foi sistematicamente proibida, mercê de decisões judiciais proferidas pelo Tribunal de Justiça, sempre em atendimento a pedidos formulados pelo Ministério Público, sob o pífio argumento de que postular a reforma da política de drogas se confunde com a apologia ao crime e o estímulo ao consumo de drogas. Foi necessário que a Suprema Corte se manifestasse para dizer o óbvio: liberdade de manifestação inclui o direito de pedir mudanças na lei de drogas.
Por aí se percebe a dificuldade de debater política de drogas em bases racionais, dada a tradição autoritária da nossa sociedade e o fundamentalismo que permeia o paradigma proibicionista.
Estamos todas e todos aqui reunidos, membros e parceiros da Plataforma, porque cada um de nós, em algum momento, individualmente ou em nome das organizações-membro, decidimos assumir a responsabilidade pelos diversos problemas que a guerra às drogas causa à nossa sociedade.
É com o peso dessa responsabilidade e com a pressa para salvar cada uma dessas vidas que iniciamos os trabalhos da Plataforma. E, por isso, nos dispomos a dialogar com os diversos meios de comunicação para ajudar a qualificar o debate e a informar sobre os reais danos causados pelas drogas e pela política de drogas. Vamos impulsionar e articular pesquisadores para que tenhamos mais conhecimento sobre o tema. Vamos aos gabinetes de parlamentares, autoridades e suas assessorias apresentar dados e argumentos que embasem propostas de mudança na política de drogas do Brasil. Vamos dialogar com diversos movimentos sociais e organizações políticas para fortalecer nossa capacidade de mudança. Temos um compromisso com o resultado da nossa ação política, pois ela deve ser capaz de responder aos problemas identificados. Ao mesmo tempo, temos a responsabilidade de potencializar ações já iniciadas pelas organizações que compõem a Plataforma, identificando oportunidades de parcerias e apoios. A dificuldade da tarefa não nos desanima, antes o contrário: estamos mais motivados do que nunca, porque sabemos que estamos combatendo o bom combate. O tabu moral que tornou possível o surgimento da proibição tem a ver com uma mentalidade medievalesca, a qual, em pleno século XXI, não tem mais lugar. Passou da hora de varrer a proibição para o limbo da história.
Precisamos botar um fim nessa guerra. Há um antigo brocardo latino que diz: si vis paccem, parabellum, que significa “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. É tempo de subverter essa lógica: não queremos mais guerra, queremos paz. A paz que existia na relação ancestral entre seres humanos e substâncias psicoativas e que foi rompida há aproximadamente cem anos deve ser restaurada. Basta! Não se constrói paz com guerra. A paz armada é apenas uma contradictio in adjecto. Paz significa ausência de guerra. Paz significa respeito a estilos de vida contramajoritários. Paz significa diversidade. Paz significa mais tolerância e menos ordem. É isso que nós queremos.