Na última segunda-feira, 3 de fevereiro, foi publicizada uma matéria que explorou de forma sensacionalista os dados do Levantamento das Cenas de Uso de Capitais (LECUCA) sobre a região conhecida como Cracolândia, em São Paulo. A pesquisa ainda não foi publicada, e tivemos acesso apenas a uma apresentação de slides com os principais resultados do estudo realizado pelo grupo UNIAD, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
A pesquisa apresenta dados relevantes sobre as pessoas que frequentam a região, mas nos espantou que, apesar do perfil veiculado sobre as vulnerabilidades das pessoas que circulam a Cracolândia (negras, pobres, com baixo grau de escolaridade e em situação de rua) ser reafirmado em diversos outros estudos, a narrativa sugerida pela apresentação e em matérias correlatas não é o fomento ao cuidado e à qualidade de vida das pessoas, e sim a ações policialescas e violentas. Também houve pouco cuidado na apresentação dos dados referentes a gênero: as pessoas foram divididas pelas categorias mulher, homem e transgênero, não esclarecendo a forma como essa atribuição foi feita, e as associando à seguinte imagem:
O destaque dado pela matéria veiculada na Folha de São Paulo foi o impacto econômico, extremamente questionável em termos de confiabilidade. Os dados disponibilizados, entretanto, são insuficientes para uma análise crítica do estudo, pois suscitam questionamentos que não foram respondidos pela apresentação.
Segundo Maurício Fiore, editor da Revista Platô e membro da PBPD, “de uma amostra de 30 pessoas selecionadas por conveniência, se chegou a um gasto diário médio com crack de R$ 192. Numa contagem feita na mesma pesquisa, estimou-se o número que circulam diariamente pela Cracolândia em 1680. Pronto, multiplicação simples e R$ 9,7 milhões mensais”.
A complexidade da economia do tráfico em cenas de uso de grandes cidades pode ser bem maior do que a simples multiplicação de números. Os números parecem mais querer gerar uma visibilidade midiática simplista do que, de fato, produzir conhecimento. O que sabemos é que se computarmos os gastos da repressão cotidiana do local certamente iremos nos deparar com valores bastante espantosos.
Em relação às motivações que poderiam fazer as pessoas saírem da região, a própria apresentação de pesquisa aponta como principais fatores a existência de moradia, apoio familiar e trabalho – todos aspectos que demandam políticas públicas para serem efetivados.
Ainda assim, a matéria parece dar outra interpretação a esses dados, indicando que a solução para concretizar esse “afastamento” se dá, sem nenhuma surpresa, no âmbito da segurança pública. Ao atribuir a responsabilidade pela violência na região aos próprios moradores e moradoras, a responsabilidade do Estado na produção de desigualdades sociais é afastada e todas as questões estruturais são ignoradas, restando como única saída possível a intervenção das polícias.
A experiência da PBPD, uma rede de mais de 50 entidades que trabalham com política de drogas no Brasil, mostra que essa resposta reiteradamente dada pelo poder público é ineficaz.
Em 2016, a pesquisa realizada pela PBPD sobre o programa “De Braços Abertos” indicou que as ações governamentais na Cracolândia, pelo menos nos últimos 20 anos, foram executadas numa lógica punitivista e higienista, o que tem culminado no atual cenário de encarceramento e genocídio da população negra e pobre, ao mesmo tempo em que não há uma real diminuição da violência, do uso de drogas, ou até mesmo da quantidade de pessoas que frequentam a própria Cracolândia.
Também nos preocupa que esta será a provável abordagem das próximas pesquisas nacionais, já que o referido grupo da UNIFESP, recentemente fechou um milionário Termo de Execução Descentralizada (TED) com a SENAPRED para realização de 2 pesquisas nacionais sobre uso de drogas sem um processo de seleção transparente.