Confira abaixo a reprodução de um artigo de opinião do doutor em Sociologia e professor de Relações Internacionais da UCB, Rodrigo Figueiredo Suassuna sobre a relação do tráfico internacional de drogas e a justiça penal.
O artigo intitulado “O tráfico de drogas nas malhas da justiça” é o produto final de sua bolsa pela Open Society Foundations.
O tráfico de drogas nas malhas da justiça
Três estrangeiros, dois homens jovens e uma mulher, um pouco mais velha, são julgados por tráfico internacional de drogas. Juíza e procurador sentam-se em um plano mais elevado, enquanto, em um plano inferior, sentam-se a advogada e o intérprete. Próximo a outra parede, estão os réus, a mulher no meio, e um dos quatro policiais da escolta. A sala de audiências, não sendo cerimoniosa, é muito bem equipada, com cerca de oito monitores, pelos quais, por vezes, videoconferências vêm compor a audiência.
Os réus mantêm os olhos arregalados durante toda a audiência, parecendo escutar com excesso de atenção aquela língua que não era a sua. Olham com atenção firme na direção de quem estava com a palavra e, enquanto ninguém falava, olham para todos os lados, como se a reconhecer o ambiente estranho. Diferente de sua cidade natal, distante mais de 10.000 quilômetros? Diferente dos presídios onde estão desde sua prisão em flagrante, há quatro meses? Os três estavam algemados, cabelos curtíssimos os homens, e os três vestindo a indumentária padrão dos réus presos: calça cáqui larga, camiseta branca e chinelo de borracha.
O que pode passar despercebido aos observadores usuais de audiências como essa – por que, de fato, essas características são corriqueiras de uma sessão de julgamento por tráfico internacional de drogas – é que ali se defrontam dois grupos muito distintos. De um lado, juízes, procuradores, policiais, fiscais tributários, que são parte de uma elite intelectual e burocrática, mais que suficientemente preparada e equipada para tomar decisões de impacto para a vida coletiva em escala local, nacional e regional. De outro lado, indivíduos das camadas mais vulneráveis da sociedade global – jovens arrimos de família desempregados – dispostos a arriscar suas vidas para ganhos mínimos em prazos a perder de vista. A cada um dos estrangeiros da cena anterior, foi prometida a quantia de US$ 1000,00, para que embarcassem em um aeroporto internacional brasileiro com pacotes de cocaína atados ao corpo, por baixo das roupas. Eles foram avisados que, dessa quantia, que receberiam quando e se chegassem ao destino (o que não foi o caso), seria deduzido o valor de passagens aéreas e outros custos necessários à empreitada. Nos respectivos interrogatórios, os três réus deram informações sobre o homem que os recrutou, semanas antes da prisão.
Pelos relatos ouvidos na audiência, era possível ter ideia da trajetória dos estrangeiros nas malhas da justiça brasileira. Tudo começa quando um deles passa pelo pórtico de detecção de metais do aeroporto. Apesar de nenhuma detecção, o indivíduo parece estar nervoso, o que chama a atenção do funcionário que lá trabalhava. Estranhando o nervosismo do estrangeiro, o funcionário resolve revistá-lo, encontrando pacotes com um pó branco atados ao tornozelo do estrangeiro, chamando em seguida os policiais federais de plantão no aeroporto. Desde a chegada dos policiais federais ao local, foi um curto intervalo de tempo até que fossem presos os outros dois estrangeiros que viajavam com o indivíduo abordado no pórtico.
Durante a audiência, a primeira frase dita pela juíza em cada um dos três interrogatórios foi a seguinte: “Você está sendo acusado por tráfico internacional de drogas”. Em todos os três interrogatórios, a reação imediata do réu após ouvir a tradução da frase foi de choque. “Não, eu não sou traficante”, disse um dos homens, segundo o tradutor. “Eu não sou criminosa, nunca fui”, disse a mulher, iniciando um choro convulsivo, já no início do interrogatório. A reação do terceiro homem foi arregalar os olhos, menear a cabeça negativamente e balbuciar algumas palavras, enquanto o tradutor gesticulava pedindo calma e falando algumas palavras de advertência na língua nativa.
Em certo sentido, os estrangeiros estão certos: se traficante é aquele que lucra com a venda de drogas, não se pode dizer que esses transportadores, ou “mulas”, como são conhecidos, se enquadrem nessa definição. Transportar drogas é crime segundo a Lei Nacional Antidrogas, de 2006. Mas, em sentido estrito, pode-se dizer que traficantes são aqueles que ocupam posições mais altas na rede do tráfico de drogas: agenciadores de “mulas”, lavadores de dinheiro e os que lucram com o avanço da cadeia produtiva da droga, também considerados criminosos segundo as leis brasileiras. Contudo, estes muito raramente ingressam no que chamamos de fluxo da justiça penal, que é a série de decisões tomadas sobre um mesmo processo penal por diferentes atores. O fluxo do tráfico internacional de drogas é composto por juízes federais, procuradores, policiais de corporações federais e estaduais, fiscais da receita federal, além de agentes privados, como no caso ora relatado. Esses chefes criminosos não são parte do trabalho cotidiano do fluxo, pois raramente são presos e, quando o são, raramente prosseguem no fluxo. A entrada desses “chefes” no fluxo é fruto de operações extraordinárias realizadas pela polícia federal.
O fato de transportadores – não apenas as mulas, mas também os caminhoneiros profissionais – serem os “clientes preferenciais” das organizações penais brasileiras é algo reconhecido e incômodo para os operadores da justiça penal. A questão é por que profissionais tão preparados têm dificuldades em prender grandes criminosos, recaindo toda a punição sobre os pequenos? Em pesquisa que realizei a respeito do fluxo do crime de tráfico internacional de drogas na justiça penal, aponto que a falta de coordenação decisória entre as várias agências que compõem o fluxo é uma das razões para que esse viés ocorra.
A pesquisa examinou os critérios utilizados por cada um dos principais atores que compõem a justiça penal federal – juízes, procuradores, policiais federais e policiais rodoviários federais – verificando que algumas decisões tomadas sobre um mesmo processo de tráfico internacional pode decepcionar as expectativas de outros atores importantes para o processo. Observou-se, por exemplo, que, mesmo que todos os operadores tenham consciência de que só os transportadores são punidos, apenas as decisões finais do processo – a sentença e a estipulação da pena, proferidas pelos juízes – refletem essa ideia. Os juízes, de forma geral, preferem condenar e aplicar penas mais restritivas àqueles que, pelos indícios colhidos em outras fases do processo, parecem ser transportadores contumazes, que têm o crime como profissão e meio de vida.
Os demais atores utilizam uma série de outros critérios. Policiais federais e policiais rodoviários federais que atuam em postos avançados, assim como o agente privado do exemplo acima, são obrigados a escolher entre os indivíduos que terão seus corpos, veículos ou outros pertences revistados. Essa decisão está intimamente ligada à suspeição dos agentes públicos, seguindo critérios pouco regulados pelo direito processual penal ou por outros protocolos. Um exemplo de critério é a manifestação de nervosismo por um passageiro ou motorista como reação à presença policial. Se, durante essas abordagens, os policiais e fiscais encontrarem drogas, eles têm o dever legal de dar voz de prisão ao abordado e conduzi-lo à delegacia de polícia federal. Na delegacia, o delegado utiliza indícios de autoria e materialidade para decidir instaurar ou não um inquérito policial e critérios semelhantes são utilizados pelo procurador para decidir iniciar ou não uma ação penal. O processo penal levará os réus a um julgamento, como ocorre na audiência descrita acima. Observe-se que o fluxo de um processo na justiça penal tem uma forma de funil: o número de indivíduos que entra no fluxo ao ser alvo de abordagens vai diminuindo com o passar de cada decisão tomada no fluxo – poucos são os que vão à julgamento.
O fato de apenas o juiz utilizar o potencial criminoso do réu como critério gera certa decepção nas expectativas de policiais e procuradores. Isso é apontado por duas ideias, frequentemente manifestadas por policiais e procuradores. Primeiro, a “produção constante” de prisões, inquéritos e processos é desvalorizada pela postura liberal dos juízes para com os transportadores de drogas – expressão comum entre esses operadores é “a gente prende, o juiz solta”. Segundo, de acordo com esses operadores, boa parte do trabalho de policiais, fiscais e procuradores é desperdiçado, o que se traduz pela expressão comum “enxugar gelo”, para se referir às prisões por tráfico internacional de drogas nas fases iniciais do fluxo.
Além disso, há uma questão de poder: todas as decisões do fluxo convergem para a construção da sentença, por parte do juiz. Este tem acesso a todas as informações coletadas em outras fases do processo. Entretanto, os demais atores possuem o chamado poder de agenda: juízes só decidem sobre as prisões feitas nas fases anteriores. Desse modo, os operadores que decidem sobre a abordagem são aqueles com maior poder de agenda, poder que vai diminuindo quanto mais se avança no fluxo da justiça penal. Nesse sentido, as decisões do juiz na fase final são enormemente limitadas pelas decisões tomadas nas fases anteriores do fluxo. Note-se que essas primeiras decisões, especialmente a abordagem, são orientadas por critérios absolutamente estranhos à agenda judiciária, como os estereótipos comportamentais que levaram à prisão dos três estrangeiros no exemplo citado.
A criação de uma agenda comum para todos os atores do fluxo de justiça é uma necessidade urgente. Uma agenda comum coordenada pelos juízes faria com que a priorização da prisão de criminosos profissionais em relação aos transportadores fosse estendida dos tribunais às procuradorias e às polícias. Essa medida implicaria ainda em maior transparência das decisões judiciais diante das demais organizações da justiça penal que ajudam a construir os processos penais. As formas de buscar essas prioridades ficariam a cargo de cada uma das organizações, respeitando as limitações como a falta de recursos e o risco a que os policiais estão expostos. Parte dessa priorização já está presente nas operações realizadas pela polícia federal, que, no entanto, devem ser incentivadas ganhar espaço no cotidiano do fluxo. Assim, pessoas como os estrangeiros da cena aqui descrita deixariam de ser os ocupantes preferenciais do banco dos réus.