No último mês, o debate sobre a redução da maioridade penal – prevista na PEC 33, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) – voltou à tona na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Se o crime de tráfico de drogas é responsável pelo aumento na taxa de encarceramento no Brasil, reduzir a idade penal poderá inchar ainda mais o sistema penitenciário brasileiro.
Pensando nisso, a Plataforma convidou a psicóloga Heloísa de Souza Dantas (consultora técnica da Associação Horizontes, que compõe a PBPD) para comentar a medida. Com mestrados em psicologia comunitária pela Michigan State University e pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, Heloísa atua há mais de 10 anos com adolescentes autores de ato infracional e compõe a coordenação do Núcleo de Direitos Humanos e Políticas Públicas do Programa Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas – IPq/HC-FMUSP.
PBPD: O Senado retomou a discussão sobre a redução da maioridade penal. Levando em consideração a atual Lei de Drogas, quais os principais riscos da aprovação da PEC 33?
Heloísa de Souza Dantas: Na proposta de redução da maioridade penal não está em jogo a redução da violência, mas o forte desejo de vingança de alguns setores da sociedade. Uma justiça criminal cada vez mais punitiva não assegura paz social, como demonstram os indicadores de países cuja legislação é mais severa, com a previsão, inclusive, da pena de morte, como os EUA ou a China, líderes em encarceramento. Hoje o Brasil conta com a 4ª maior população carcerária do mundo em números absolutos e o que tem a maior velocidade de encarceramento, havendo um déficit de 231.062 vagas em todo o sistema. O que estamos buscando com a aprovação da PEC 33? Isolar e excluir cada vez mais aquelas pessoas consideradas “indesejadas” pela sociedade? Desde 2006, com a lei 11.343 (Lei de Drogas), sabe-se que o número de condenados cumprindo pena por tráfico cresceu 344,8%. Atualmente, cerca de 58% das mulheres e 23% dos homens presos cumprem pena por tráfico de drogas. Em 2005, esses índices eram, respectivamente, de 24,7% e 10,3%. Também há evidências de que o suposto traficante que hoje está preso é muitas vezes um usuário de drogas que pode ou não ser dependente ou ter problemas decorrentes deste uso, mas que de toda forma precisa do foco das políticas de saúde e da assistência. A maioria dos presos é jovem, negra/parda e possui baixa escolaridade. Levando em conta tais fatores, os riscos da aprovação da PEC 33 são: aumento do número de adolescentes/jovens encarcerados devido ao “tráfico de drogas”, criminalização e estigmatização crescente de uma parcela da população que precisa ser alvo das políticas de saúde e de assistência e perpetuação de uma seletividade penal que só busca o encarceramento de jovens negros da periferia.
PBPD: A população carcerária aumentou de forma considerável no Brasil nos últimos anos. Muitos especialistas veem como um dos motivos desse crescimento a aprovação da atual Lei de Drogas, em 2006. Como você vê o impacto da lei nos números do sistema socioeducativo?
Heloísa de Souza Dantas:Assim como no sistema prisional, atualmente há superlotação na maioria dos centros socioeducativos de internação no Brasil. A Fundação CASA, responsável pela execução das medidas de restrição e privação de liberdade no estado de São Paulo, conta com cerca de 40% do total desta população no país. Em 2006, 14% dos adolescentes na Fundação CASA estavam cumprindo medida de internação por tráfico de drogas, sendo que em 2010 este percentual passou para 36,9%. Em 2014, considerando unicamente os adolescentes em medida de internação, 40,7% estavam cumprindo medida devido ao tráfico de drogas e 40,1% por roubo qualificado. Todos esses dados corroboram para o fato de ter havido, após 2006, um crescimento no número de internações de adolescentes devido ao tráfico de drogas. Como a Lei não estabelece uma diferenciação objetiva (quantitativa) entre uso e tráfico, adolescentes que portam pequenas quantidades de drogas são muitas vezes internados pelo local onde residem e cor da pele. Ou seja, 70 gramas de maconha apreendidas na Z. Oeste de São Paulo não tem o mesmo tratamento de 70 gramas de maconha na Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo. Ao mesmo tempo, a lógica proibicionista criou a ideia do traficante de drogas como um ser perigoso que precisaria ser combatido. A noção de combate se aplica diretamente ao pequeno traficante, varejista de drogas, e não ao grande aparato do crime organizado que controla o comércio de drogas ilícitas, incluindo aí a lavagem do dinheiro no sistema financeiro. Se realmente quiséssemos enfrentar o crime, teríamos que mexer em um universo em que personagens e instituições do mundo lícito encontram-se fortemente entrelaçadas com o universo da ilegalidade.
Ademais, faltam pesquisas nacionais para identificar o padrão de uso de drogas entre os adolescentes que cumprem medidas de internação. Há estudos pontuais ou, no máximo, de representação estadual, no caso do Estado de São Paulo. Um levantamento encomendado pela Fundação CASA em 2006 apontou o uso frequente de maconha por 62% dos entrevistados, sendo que 46% afirmaram já ter experimentado cocaína e 19% faziam uso frequente desta droga. Estudo do Conselho Nacional de Justiça conduzido nos centros socioeducativos de todas as regiões brasileiras revelou que aproximadamente 75% faziam uso de drogas ilícitas antes da internação, sendo o percentual mais expressivo na região centro-oeste (80,3%). Quanto ao tipo de droga, a maconha foi a substância mais usada, seguida da cocaína, com exceção da região Nordeste, em que o crack foi a segunda droga mais utilizada.
PBPD: O aumento do tempo de internação para adolescentes que cometem crimes mais graves tem sido colocado como uma alternativa à redução da maioridade penal. Como você avalia essa medida e quais seriam os impactos dela no sistema socioeducativo?
Heloísa de Souza Dantas: Acho uma medida demagógica que continua mirando o adolescente como responsável pelos atos violentos da nossa sociedade. É uma tentativa de dar uma resposta rápida a um apelo midiático que alimenta um clamor popular que elege os adolescentes como os bodes expiatórios do país. Focamos a energia em um lado da moeda (punir mais e por mais tempo os adolescentes que cometeram crimes mais graves) e deixamos de olhar o outro lado da situação. Qual é este outro lado? O Mapa da Violência de 2014 aponta que 7 jovens entre 15 e 29 anos são mortos a cada duas horas, perfazendo 82 jovens mortos por dia e 30 mil por ano. Dos assassinados, 77% são negros. Isto nos mostra que eles são as maiores vítimas de uma violência cotidiana concreta e simbólica. Tal violência acontece desde os primeiros anos de vida com a ausência de cuidados básicos, péssimas condições de habitação e saúde, ausência de pessoas que possam orientá-los para questões básicas considerando um desenvolvimento adequado, entre muitos outros pontos que teriam que ser garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e que estão longe de ser implementados. Claro que nada disso leva um adolescente a matar outra pessoa e que diante da gravidade deste ato o adolescente deve ser responsabilizado, como já o é no caso da internação que pode durar até 3 anos. Porém, se considerarmos que é uma grande minoria a responsável pelos atos graves – no ano de 2014, 1,1% dos adolescentes estavam cumprindo medida de internação por latrocínio e 0,8% por homicídio doloso qualificado no estado de São Paulo-, deveríamos estar discutindo maneiras de prevenir o envolvimento desses jovens em atos desta gravidade e não supor que eles nasceram com um instinto assassino e que a única maneira de fazê-los pagar pela gravidade do ato bárbaro é mantê-los mais tempo encarcerados. O que faremos com eles quando saírem do cárcere? Quais são as possibilidades efetivas de inserção social? De que maneira o estigma de ter passado pela “Febem” (como os próprios adolescentes falam) contribui para a suposta reinserção social? Se o único objetivo for a vingança, o aumento do tempo de internação pode dar uma falsa ilusão de reparação, porém o jovem continuará existindo e um dia deverá retornar para o convívio social. Em relação ao sistema socioeducativo que já vive um problema de superlotação, a permanência por mais tempo de alguns jovens acaba dificultando muito a rotina e a possibilidade de realizar efetivamente um trabalho pedagógico com os adolescentes. Ao saber que estão “pagando” uma “pena” e não mais uma medida socioeducativa, os adolescentes provavelmente passarão a estabelecer outras relações de poder nas unidades. Além destes fatores, ao abrir o precedente do aumento do tempo de internação para determinados atos infracionais, quem garante que tal flexibilização do ECA não levará a revisões futuras do Estatuto e da Constituição?
PBPD: Na semana passada, o jornal Folha de S. Paulo revelou que, por falta de vagas nas fundações casa, o governo estadual tem negado a internação a jovens que cometem infração. Não parece contraditório que a criminalização de menores seja uma reivindicação constante, mas que o estado mais rico da federação não tenha estrutura para recebê-los?
Heloísa de Souza Dantas: Não vejo contradição, mas a constatação de que há um desejo social de que os adolescentes vistos como perigosos sejam afastados por meio da prisão (o nome correto é centro de internação, mas na prática obedecem a uma lógica prisional com atividades pedagógicas que existem em poucos estados brasileiros). Se haverá superlotação, se há descumprimento do Estatuto da Criança e Adolescente quando a integridade física e psíquica desses jovens não é garantida, se há violência nos centros de internação (e ainda há muita violência de diversos tipos), se alguns meninos acabam morrendo nos centros quando deveriam estar sob a responsabilidade do estado, nada disso importa aos olhos de uma parcela da população que exige vingança. A proposta de redução da maioridade penal nada mais é do que expor e penalizar o jovem mais cedo às péssimas condições das prisões brasileiras, consideradas masmorras medievais. Até por um ponto de vista mais pragmático, é importante que a sociedade possa refletir que não haverá redução da violência com esta medida e que a probabilidade de alguém ser vitima de um jovem que passou pelo sistema prisional pode ser maior do que um sistema socioeducativo que conseguisse efetivamente garantir o caráter pedagógico da medida socioeducativa conforme previsto no ECA.
PBPD: Temos em São Paulo a Unidade Experimental de Saúde (UES), que mantém dentro de seus muros adolescentes e adultos que teriam o diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial. No papel, a unidade promete acompanhamento terapêutico e tratamento aos internos, mas, na prática, a UES é conhecida como “Guantánamo psiquiátrica”. Como você vê o funcionamento da UES e qual o seu papel no tratamento desses jovens?
Heloísa de Souza Dantas: Falar em tratamento é no mínimo irônico diante de um lugar que tem como único objetivo manter os adolescentes e jovens isolados da sociedade. Já houve muitas denúncias de abandono e das péssimas condições que esses jovens estão submetidos, sem haver qualquer projeto terapêutico e cuidados médicos/psicológicos. A questão é que a Unidade Experimental de Saúde só existiu para possibilitar a extensão do tempo da “pena” do adolescente e garantir que estivessem afastados do convívio social por serem considerados “perigosos”.
PBPD: Tendo como base sua experiência, como você avalia a relação de crianças e adolescentes com o mercado de drogas ilícitas?
Conversando um dia desses com um jovem de 19 anos que já passou três vezes pela Fundação CASA devido ao tráfico de drogas, ele me disse que sua trajetória no mercado de drogas ilícitas começou aos 12 anos quando começou a perceber que precisava de mais condições do que os avós poderiam dar. O primeiro envolvimento foi como “campana”: ele ficava na ponta de um beco e se a polícia chegasse, ele tinha que gritar “moio a trilha”. Com o tempo passou a ocupar outras funções e na opinião dele, resolveu permanecer devido à “fama entre os amigos, a boa condição de vida, e a intenção de um dia chegar a gerente”. Além disso, este mesmo jovem “colocou na mente” que o crime “corria em suas veias” e que não saberia fazer mais nada bem na vida.
O jovem mencionado é pardo, mora em uma região de alta vulnerabilidade social, não conheceu o pai e a mãe há muitos anos é dependente de drogas. Ele viu o irmão mais novo se matar quando tinha 11 anos de idade e os avós o criaram. Mencionei este caso por representar de alguma maneira a trajetória da maioria desses meninos e meninas e por entender que a maioria entra para o comércio de drogas ilícitas ao perceber uma oportunidade de ascensão social que pode trazer muitos ganhos materiais e simbólicos. Ou seja, não são meninos e meninas que tem uma identidade inata com o crime, mas querem trabalhar e conseguir um lugar ao sol por meio de algo que é normal na comunidade onde vivem. Eles até entendem que não é um trabalho como outro qualquer, mas na prática, é um trabalho e muitos percebem a atividade desta maneira.
Ao mesmo tempo, vejo um abismo na percepção de muitos promotores, juízes, técnicos e educadores que trabalham nos centros socioeducativos em relação a esses adolescentes. Lendo um prontuário há alguns meses, me deparei com o seguinte relato de um promotor: “a conduta reiterada do adolescente mostra que se trata de pessoa com personalidade distorcida e voltada à prática de ilícitos, sendo certo que solto poderá colocar em risco à ordem pública. Tanto que mostrou não estar arrependido do delito, alegou não estudar porque não gosta de ir à escola e não trabalhar ficando na rua. Assim, certamente que reincidirá caso permaneça em circunstâncias que o favoreça”.
Penso que a noção moral de “arrependimento” ainda inspira muitos profissionais que atuam na área e há uma estigmatização precoce que culpabiliza o adolescente como se fosse um ser “perigoso”, com personalidade “distorcida” e que deve ser encarcerado para evitar um mal maior à sociedade. Neste momento falhamos imensamente como sociedade: de que maneira alguns meninos e meninas podem ser tão precocemente marcados e encarcerados sem possibilidades concretas para construírem outras possibilidades de inserção social? No cotidiano das cidades brasileiras, os adolescentes são atingidos diretamente pela instantaneidade e ausência de perspectivas do nosso tempo, bem como pela profunda desigualdade social atribuída à má distribuição de renda e ausência de políticas públicas capazes de responder às necessidades de saúde, educação, cultura, dentre outros campos de direito de uma população que vive constantemente bombardeada por ideologias de consumo que afirmam de forma impositiva que o lugar social de cada indivíduo se traduz pelo seu potencial aquisitivo.
Com certeza deveríamos nos aproximar efetivamente das histórias desses meninos e focar nossas ações na prevenção e na melhoria das políticas existentes para fazer valer os direitos das crianças e adolescentes previstos na lei. É triste constatar que a redução da maioridade penal traça o caminho inverso e só irá contribuir para perpetuar a profunda desigualdade social existente em nosso país.