Posicionamento da Plataforma Brasileira de Política de Drogas sobre a situação atual da política de regulação da canabis para fins terapêuticos no país

16 de março, 2021 PLATAFORMA PBPD Permalink

Recentemente, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) teve suspensa a sua autorização para cultivo e distribuição de extrato de cânabis para fins terapêuticos. O desembargador federal Cid Marconi, do Tribunal Regional Federal da 5a Região (TRF5), suspendeu temporariamente a sentença a partir de questionamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ao Tribunal, alegando que a Associação estava descumprindo determinadas exigências impostas pela Agência. Imediatamente à decisão, houve uma intensa mobilização de associações, pacientes e familiares que precisam dos extratos produzidos pela Abrace para manutenção do tratamento para inúmeras enfermidades para as quais a cânabis tem indicações terapêuticas e que trazem acúmulos de evidências científicas quanto a sua segurança e em, alguns casos, eficácia. Por conta desta reação, a Associação recebeu em sua sede o desembargador Marconi e a Anvisa a fim de alinhar as exigências e derrubar a suspensão, o que de fato ocorreu dias depois.

A Abrace atende hoje cerca de 14 mil famílias no Brasil que conseguem obter tratamento com canabinoides graças ao trabalho desenvolvido pela Associação. Os medicamentos canabinoides autorizados pela Anvisa para as mesmas finalidades, tanto para importação quanto para aquisição no Brasil, são caros, com formulação limitada e que não atendem às diversas necessidades apresentadas pelos pacientes em termos de concentrações e doses. Parte relevante das pessoas que buscam nos canabinoides seu tratamento demanda pelo tetrahidrocanabinol (THC), molécula que vem sendo questionada por conta dos possíveis eventos adversos associados ao seu consumo. Todos os medicamentos registrados pela Anvisa designados aos tratamentos das mesmas enfermidades apresentam eventos adversos tão relevantes quanto o THC. Inclusive, o primeiro medicamento à base de cânabis registrado pela Agência contém THC para tratamento de espasmos em decorrência da esclerose múltipla.

Pessoas que apresentam enfermidades crônicas, de difícil controle pelos medicamentos de referência, têm perda das suas funções, de sua autonomia, do seu bem estar e de qualidade de vida, condição que também se reflete nas vidas das famílias e cuidadores. Os canabinoides, inclusive o THC, são capazes de minimizar os sintomas de algumas enfermidades e, com isso, atuar como adjuvantes na redução de sintomas, assim como outros componentes reunidos em comitiva no fitocomplexo.

Após esta reunião com o desembargador federal citado, foi consensuada a permanência de funcionamento da Associação, que por sua vez se comprometeu a regularizar a sua produção de acordo com as exigências da Agência. Exigências estas que não devem ser a regra para as outras associações do Brasil. O trabalho desenvolvido pela Abrace é de suma importância, mas não deve nem pode servir de modelo para as outras associações. Deve existir um escalonamento de exigências a partir do tamanho e da realidade financeira de cada associação.

 

Incorporação do CBD no SUS

Também recentemente, por encomenda da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde (SCTIE/MS) a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) apresentou parecer desfavorável à incorporação no SUS da tecnologia Canabidiol 200 mg/ml da indústria farmacêutica Prati Donaduzzi. Após o parecer da Comissão, foi aberta consulta pública para manifestação da sociedade em torno do tema.
É salutar pensar em abordagens de facilitação de acesso a derivados da cânabis e sua inclusão no Sistema Único de Saúde, no entanto, devem ser colocadas à discussão a produção nacional destes compostos, a regulação do cultivo da cânabis e usufruto de todos os seus componentes, inclusive do THC, para fins terapêuticos, a possibilidade de sua produção e distribuição pelos programas Farmácias-Vivas: a interação e ampliação das Associações como a Abrace, com os hortos-matriz que poderiam garantir a procedência de variedades; assim como com as universidades na elaboração de boas práticas para cultivo, manejo, extração, posologia e consumo. Suprir a demanda de milhares de famílias que necessitam dos canabinoides para epilepsias provenientes de síndromes genéticas raras como Dravet e Lennox-Gastaut seria uma vitória, sobretudo à saúde destas pessoas e suas famílias.

No entanto, oferecer apenas uma única apresentação farmacêutica pode não ser suficiente para mitigar os sintomas da enfermidade, que pode ser diversa e complexa. Por ser o sistema endocanabinoide de cada indivíduo personalizado, nem todos se adequam à mesma terapia. Inclusive, um estudo conduzido por pesquisadores brasileiros demonstrou que os extratos enriquecidos com canabidiol atuam de maneira distinta do CBD isolado nos casos de epilepsia, aumentando a capacidade terapêutica desse composto quando associado a outras moléculas que compõem o fitocomplexo.

Estima-se que cerca de 600 mil pessoas apresentam epilepsia resistente aos tratamentos de referência no Brasil, e que extrapolam os casos de síndromes genéticas. Há uma carência de estudos quanto à eficácia do canabidiol na redução da frequência de crises nesta população, entretanto, é possível que estas pessoas também possam se beneficiar dos canabinoides como adjuvantes na remissão das crises convulsivas. Pela análise da Comissão estes não seriam contemplados pela incorporação. É preciso debater amplamente os critérios de regulação do acesso aos canabinoides para fins terapêuticos, fortalecer as iniciativas das associações de cânabis terapêutica, regular a produção nacional desta planta e fazer com que seus compostos sejam acessíveis à população que mais precisa.

É provável que tenha ocorrido algum erro na formulação do questionário para consulta pública da Conitec: há uma incongruência quanto à posição da Comissão diante da proposta. No cabeçalho da consulta fica expressa a recomendação desfavorável à incorporação:

Já nos questionários a pergunta é feita como se a recomendação fosse positiva. É preciso que esse paradoxo seja explicado pela Comissão:

 

Recentemente foi concedido à Associação Cultive Cannabis e Saúde de São Paulo e entidade membro da Plataforma um habeas corpus para cultivo coletivo entre seus associados. Essa é uma grande vitória da Cultive que deve ser comemorada! Além disso, diversos projetos de lei tramitam nas casas legislativas e que discorrem sobre o tema estão estagnados e atrasam o acesso aos componentes da cânabis por quem precisa, com destaque para o PL 399/2015, ao que parece aquele com a discussão mais avançada no Congresso Nacional. A ADI 5708 tal proposta pelo Cidadania para descriminalizar a cânabis para fins terapêuticos foi concluída em 2018 pela Ministra Rosa Weber. Desde 2011, o Recurso Extraordinário 635.659 que discute a constitucionalidade do porte de drogas para o consumo pessoal contido no artigo 28 da Lei 11.343/2006 segue em análise pelo STF e não tem previsão para entrar em pauta. Até o momento, três ministros (Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin) proferiram seus votos e Alexandre de Moraes pediu vistas em 2018 para analisar o recurso.

O caminho é longo, a demanda é urgente e o atraso faz mal aos indivíduos e à sociedade.

Plataforma Brasileira de Política de Drogas Março de 2021