Por Andrea Gallassi, Professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora-geral do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB e Gabriel Santos Elias, Coordenador de Relações Institucionais da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.
Em uma reviravolta no julgamento do RE 635.659 no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta tarde, os ministros Roberto Barroso e Edson Fachin consideraram inconstitucional a descriminalização apenas do porte para consumo pessoal de maconha. A distinção entre usuários de maconha e das outras drogas não deveria ser feita na análise da constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas, objeto do RE, sob pena de tornar ainda mais desigual e injusta a nossa política de drogas, mantendo a ineficiência atual da criminalização para as políticas de saúde dos usuários e sua estigmatização.
O artigo 28 da Lei 11.343, que tem sua constitucionalidade analisada neste caso de repercussão geral reconhecida, não faz distinção entre maconha e outras drogas. Ao questionar a constitucionalidade desse artigo, a Defensoria Pública do estado de São Paulo argumenta que o Estado não pode proibir uma conduta que, ainda que cause dano ao indivíduo, não faça mal a terceiros. Esse princípio serve para proteger os indivíduos do poder do Estado, um dos papeis mais importantes da nossa Constituição. Mas, ao decidir que a inconstitucionalidade se reserva apenas para os usuários de maconha, os ministros Fachin e Barroso levam a crer que os demais usuários não mereçam essa proteção.
Essa proteção se reveste de uma importância prática quando observamos a realidade do atendimento de saúde para usuários de drogas. É evidente, e isso foi salientado por diversos especialistas e autoridades da área de saúde pública em audiências com ministros do STF nas últimas semanas, que a criminalização do usuário tem o grave efeito de afastar dos serviços de saúde aqueles que têm relação problemática com as drogas, ou seja, os que mais precisam de cuidado.
O Estado que busca cuidar é o mesmo Estado que pune. Portanto, é natural que, nesse contexto, os serviços de saúde sejam vistos pelos usuários como uma potencial ameaça à sua liberdade. Se há uma preocupação dos ministros com a saúde dessas pessoas, especialmente com a saúde dos usuários de drogas consideradas arbitrariamente por eles como “mais pesadas”, a manutenção da criminalização desses usuários é a pior medida.
O ministro Luís Roberto Barroso fez uma esplendorosa contextualização sobre o fracasso da guerra às drogas e de todos os efeitos relacionados à proibição. Fez referência aos modelos mais progressistas vigentes, como os casos do Uruguai, Portugal e dos vários estados estadunidenses. Defendeu, como medida para enfraquecer organizações criminosas que vivem do tráfico, a regulação da produção, distribuição e consumo de todas as drogas. Fez a importante defesa de critérios objetivos de quantidades para distinguir usuários de traficantes, necessária para dar eficácia à decisão pela inconstitucionalidade da proibição do consumo de drogas.
No entanto, justificou politicamente sua decisão pela descriminalização apenas da maconha e não das outras drogas, dizendo que a medida deve ser tomada passo a passo, como se a Constituição pudesse ser defendida apenas parcialmente, ou “um passo de cada vez” pelo Supremo Tribunal Federal.
Ao evocar a imagem de alguns usuários de drogas como “corpos sem alma”, uma imagem alardeada pela mídia especialmente para usuários de crack, mas frontalmente questionada pela comunidade científica especializada, o ministro evidencia um posicionamento que não considera a autonomia desses indivíduos, o que reforça a exclusão vivida por eles. No entanto, justamente esses que deveriam ter sua autonomia mais protegida, junto a todos os demais direitos que correntemente lhes são negados em razão dos diversos fatores de vulnerabilidade social a que geralmente estão submetidos.
O posicionamento pela descriminalização apenas de uma dentre as demais drogas, revela um caráter discriminatório que fere o princípio básico da isonomia dos cidadãos, que devem ser considerados iguais perante a lei. Sendo confirmada pela maioria dos Ministros a manutenção da criminalização do consumo de determinadas drogas. O STF terá o amargo legado de ter legitimado a condição de excluídos daqueles que já vivem em contexto de vulnerabilidades, que seguirão ainda mais distantes da possibilidade de viverem suas vidas de forma mais digna. Ainda há tempo de mudar.
Publicado originalmente no JOTA.