Na terceira edição do PBPD Entrevista, a Plataforma conversou com Ingrid Farias, ativista feminista antiproibicionista que compõe a Secretaria Executiva da ABORDA e a Rede Latino-Americana de Pessoas que Usam Drogas (LANPUD) – ambas parceiras da Plataforma – e a Rede Nacional de Coletivos e Ativistas Antiproibicionistas (RENCA). Além de organizar a Marcha da Maconha no Recife, Ingrid também está envolvida no I Encontro Nacional de Coletivos e Ativistas Antiproibicionistas (ENCAA), que acontece em Recife nos dias 24, 25 e 26 de junho.
Confira abaixo a entrevista!
PBPD: O que é o ENCAA?
Ingrid Farias: O Encontro Nacional de Coletivos e Ativistas Antiproibicionistas (ENCAA) está sendo organizado pela Rede Nacional de Coletivos e Ativistas Antiproibicionistas (RENCA), que tem como objetivo articular as redes estaduais e municipais que dialogam com a reforma da política de drogas. O ENCAA foi pensado a partir da Cúpula dos Povos, que aconteceu no Rio de Janeiro em 2012, e começamos a organizar o encontro a partir de 2014, num encontro posterior também no Rio.
PBPD: Quais as pautas do encontro?
Ingrid Farias: A proposta do ENCAA é que a gente possa articular todas as pautas que transversalizam a reforma da política de drogas. No ENCAA, teremos diálogos sobre o racismo na política de drogas, sobre o papel do feminismo nessa frente. Haverá também discussões sobre classe e saúde, num contexto de redução de danos. É fundamental também que se discuta a reforma da política de drogas sob o viés da economia: como o capital econômico pode se apropriar desse processo? Como essa legalização vai acontecer e quem serão os atores que tomarão conta dessa legalização?
Temos também o propósito de construir um projeto de lei e que esse PL seja apresentado a alguns parlamentares específicos, que já estão construindo esse processo conosco. Temos parlamentares estaduais e também em nível federal. Parlamentares de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo estarão no Encontro para receber esse projeto. Além disso, entregaremos o PL à Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (SENAD) para que também discutamos como será a condução das políticas públicas no âmbito das drogas.
O ENCAA vai aglutinar todo esse bojo de informações e, a partir dos participantes, pretende-se iniciar um processo de multiplicação: formar ativistas dentro do ENCAA é importante para que o debate da política de drogas seja fortalecido em outros estados.
PBPD: Qual é a importância da articulação da sociedade civil em torno da reforma da política de drogas? Como impactar os poderes institucionais?
Ingrid Farias: É importante pensar que a reforma da política de drogas – que já está acontecendo no Brasil há muitos anos por meio da consolidação da redução de danos como prática oficial de cuidado – dialogue com as demandas da sociedade. Não é possível que a gente concorde com uma reforma da política pública, por exemplo, no âmbito da segurança, sem dialogar com a juventude negra, que é a mais atingida por essa guerra. Para nós, pensar uma reforma da política de drogas sem dialogar com a saúde, com a assistência para os problemas sociais e históricos que nós temos, não é possível. Para pensarmos uma política pública que de fato reflita as demandas da sociedade, é necessário que a sociedade civil seja ouvida. A partir desse principio, acreditamos que é importante dar visibilidade ao protagonismo de algumas populações específicas: as de moradores de rua e as de usuários de droga. É preciso, também, colocar essas pessoas no centro do debate para serem ouvidas pelo governo. Para nós, é impossível construir a reforma da política de drogas sem ouvir as populações que são historicamente afetadas, encarceradas e executadas pela política proibicionista.
PBPD: Qual o papel das Marchas da Maconha nesse tema?
Ingrid Farias: As Marchas da Maconha no Brasil surgem como uma primeira expressão de movimento social organizado pela reforma da política de drogas. Claro que a gente tem a mobilização da frente pela redução de danos, mas as Marchas da Maconha têm como característica as pessoas na rua visibilizando essa pauta. Com o passar dos anos, as Marchas têm tido uma demanda maior, que vai além da legalização da maconha: a gente compreende que a reforma da política de drogas contempla a legalização de todas as drogas. No nosso entendimento, se a proibição se mantiver para as outras drogas, os mesmos processos de racismo, de classismo e de encarceramento em massa vão continuar acontecendo com esses recortes específicos.
A Marcha da Maconha surge como um instrumento de unificação desses ativismos que dialogam com a reforma da política de drogas e fortalece esses ativistas. Ela é um espaço intrinsicamente de formação política. Muitos ativistas do Brasil que ocupam outros espaços, como o Growroom, o Coletivo DAR, o Smoke Buddies, o Cultura Verde, todas essas mobilizações antiproibicionistas surgem a partir da Marcha da Maconha.
Hoje, temos no país cerca de 180 Marchas organizadas e realizadas nas cidades de todo o Brasil. Quase metade desse total tem formação específica de movimentos antiproibicionistas. Ou seja, eles não dialogam somente a organização pontual da Marcha, mas se articulam durante todo o ano em torno da reforma da política de drogas, que culmina, inclusive, nessas discussões no Supremo Tribunal Federal, que já aconteceram na Câmara Federal, no Senado. Foram audiências que foram mobilizadas exclusivamente por esses ativistas que protagonizam as Marchas da Maconha.
PBPD: Você comentou sobre o STF. Como estão vendo o julgamento em trâmite na Suprema Corte?
Ingrid Farias: Temos esperança de que esse projeto possa caminhar compreendendo que, em outros países da América Latina, o processo da reforma da política de drogas veio também por meio do Judiciário – e não pelo Legislativo. Compreendemos também a pressão que temos vivido. A UNGASS, que terminou há pouco tempo, não trouxe o posicionamento que a gente esperava, mas dialoga um pouco sobre a importância de mudar o viés da proibição pelo viés do cuidado. Nesse sentido, o STF também acaba sendo mobilizado por essas pautas. Acreditamos que ainda é possível haver um retorno positivo. Mas diante da conjunta que o Brasil vive, não sabemos qual será o desfecho. Esses avanços que foram alcançados se devem exclusivamente à organização dos movimentos sociais. As audiências no Senado, na Câmara, nas Assembleias Legislativas e no STF foram exclusivamente protagonizadas pelo movimento social, mostrando, mais uma vez, a importância dessas organizações na reforma da política de drogas.
PBPD: Diante do cenário político atual, como fica a articulação do movimento antiproibicionista?
Ingrid Farias: Para nós da política de drogas, a conjuntura atual da política brasileira impacta diretamente esse processo de luta que estamos travando. A gente compreende que os mesmos que orquestram o golpe contra a democracia são os mesmos que orquestram há 50 anos a guerra às drogas – muitos que, inclusive, são beneficiados por essa guerra. Não por acaso, um senador que compõe a comissão que está julgando o impeachment é o [Zezé] Perrella (PTB-MG), que em 2014 foi encontrado dentro de suas fazendas um helicóptero com 450 quilos de cocaína e nada foi feito. Isso para nós é muito simbólico.
É importante que nós, que tocamos a reforma da política de drogas, estejamos atentos que, a partir do momento que esse golpe for consolidado e essas pessoas acabarem assumindo o poder, os nossos pequenos – pequeniníssimos – avanços na política de drogas vão retroceder. Haja vista essa nova coordenação da saúde mental que está aí, com o Valencius [Wurch], que representa exclusivamente a pauta dos manicômios.
Diante dessa agenda política, o movimento pela reforma da política de drogas vai viver retrocessos. Os movimentos que dialogam com esse tema no Brasil vêm se mobilizando para que possa barrar esse golpe e barrar esses retrocessos que estão colocados não só para a política de drogas, mas para todas as populações que são historicamente oprimidas.