PBPD Entrevista: Luciana Boiteux

3 de março, 2017 Plataforma PBPD Permalink

Em entrevista à Plataforma, a professora associada de Direito Penal e Criminologia da UFRJ, Luciana Boiteux, comenta a nomeação de Alexandre de Moraes para o STF e os possíveis caminhos até a descriminalização do uso de drogas para uso pessoal, em discussão no Supremo. Representante da ABESUP como amigo da corte no julgamento do RE 635.659, Boiteux afirma ser cética quanto aos efeitos do afastamento da hediondez do tráfico privilegiado, determinado pelo STF em junho do ano passado. “Nós temos uma situação muito estranha no Brasil, que é a seguinte: enquanto prevalece o princípio da presunção de inocência, portanto, enquanto a pessoa não tem ainda uma condenação, ela é mantida provisoriamente presa. Depois que ela é condenada e tem um título condenatório é que muitos desses réus, e dessas mulheres acusadas, especialmente, são colocados em liberdade”, diz.


1) Durante a sabatina, Moraes afirmou que é necessário diferenciar uso de tráfico de drogas e que o Brasil “prende muito e prende mal”. A partir dessas declarações, é possível prever o voto do novo ministro no julgamento do RE 635.659, suspenso em 2015 após pedido de vista?

Eu me fazia essa pergunta bem recentemente. Tudo indicaria que o Alexandre de Moraes viria com uma pauta bem conservadora, com muitas expectativas de que ele representasse essa guinada conservadora no Supremo, influenciando negativamente a pauta das reformas da política de drogas. Essa seria uma leitura inicial. Por outro lado, ao verificar como ele tem se manifestado, eu não tenho mais tanta certeza de apontá-lo como um representante da guinada conservadora. A gente vai ter que acompanhar de perto como vai ser essa atuação dele no STF. Como Ministro da Justiça, ele já tinha dado declarações sobre a necessidade de diferenciar uso de tráfico. Temos que acompanhar com muita cautela a figura dele, especialmente porque o que já vimos com outros ministros do Supremo é que eventuais posições que eles manifestavam antes de serem indicados nem sempre se concretizam. O que eu vejo é que tudo vai depender dos demais ministros. Vai depender do Moraes o retorno da pauta da descriminalização para o plenário, mas eu acho que ele pode surpreender, até porque o debate da descriminalização nem é revolucionário, é um pequeno avanço que, ao que tudo indica, o Supremo vai dar. Eu tenho expectativas positivas sobre a posição do STF nesse ponto. O meu grande receio é como vai se dar essa descriminalização porque o que está em disputa até hoje são dois votos: o do Gilmar Mendes [que se mostrou favorável à descriminalização de todas as drogas] e o do [Luís Roberto] Barroso [que propôs a descriminalização apenas da maconha], que eu espero até que ele mude.

 

2) O argumento da adoção de critérios objetivos de quantidade aparece com frequência quando se discute a questão da descriminalização das drogas. Como você vê essa questão?

Eu também acho que temos que ter muita cautela nessa definição. Eu não consigo ter a expectativa de que a fixação de critérios objetivos vai resolver [a seletividade da criminalização do usuário de drogas]. Eu entendo que o sistema como ele funciona hoje, ainda que tivéssemos os critérios objetivos, não tem condições de alterar a realidade. Para além de um Direito Penal que se baseie nos elementos objetivos, nosso Direito Penal tem um elemento, que é a questão subjetiva, que é essencial para a tipificação da conduta [típica do tráfico de drogas]. Não há como fazer o debate dos critérios sem reforçar a necessidade de urgente que sejam consideradas não só os critérios subjetivos (da intenção do agente), mas também o do princípio in dubio pro reo [expressão latina que significa “na dúvida, a favor do réu”]. Porque se você não comprova que a intenção do agente seria justamente ter a intenção de comercializar, isso não poderia significar uma classificação como traficante, por exemplo. O que vemos são muitos casos em que se presume a traficância sem qualquer elemento – e com essa polícia corrupta que a gente tem, mesmo que tivéssemos um critério quantitativo, a polícia daria um jeito de plantar [prova] ou aumentar quantidades [de droga apreendida]. Eu vejo, então, com muita cautela. Acho que pode ser um avanço ter os critérios quantitativos, mas se a gente não reforçar a exigência do elemento objetivo, esse critério pode se virar contra o usuário.

 

3) Ao longo da sabatina, Moraes citou o dado alarmante sobre a população prisional feminina: 64% das mulheres em restrição de liberdade respondem por crimes ligados ao tráfico de drogas. Mesmo assim, no decreto de indulto do ano passado, formulado pelo então Ministro da Justiça à revelia dos membros do CNPCP, Moraes não indultou mulheres condenadas por tráfico. Como você analisa essa mudança de discurso?

Eu vejo o Alexandre de Moraes acima de tudo como um político. Ele é vendido como um jurista, como uma pessoa que escreveu livros, mas o fato é que ele largou a carreira jurídica para ser um político. Foi Secretário Estadual de Segurança Pública de São Paulo, depois outros cargos ocupou até, finalmente, ser ministro da Justiça e depois indicado [para o STF]. Ele dá declarações que não necessariamente ele escreveria. Não podemos dar muita credibilidade para o que ele fala. No caso das mulheres, é um pouco do que a gente tem visto hoje: o governo Temer foi muito criticado não só por não ter dado autonomia às políticas públicas para mulheres, a questão da primeira-dama também e todo esse discurso conservador que é incorporado pelo atual governo. O que me pareceu é que tanto como Ministro da Justiça quanto agora na sabatina, Alexandre de Moraes quis fazer um discurso para inglês ver, para passar uma imagem de que está preocupado com o tema [das mulheres], de que efetivamente está sensibilizado, mas eu não vejo isso como sincero. Para mim, isso é uma bravata, ele fala mesmo por uma questão política.

Agora, a única coisa que eu vejo de concreto nessa fala dele é que dentro de uma lógica mais aritmética, você tem uma possibilidade de redução de presos ao desencarcerar mulheres. Dentro dessa perspectiva da redução de gastos, contenção, ajuste fiscal, na visão do partido dele, do PSDB, essa redução no número de presos faz sentido. É um discurso político para atrair um pouco de simpatia ou apoio, mas que na verdade é pouco honesto – a não ser que ele esteja pensando numa perspectiva de desencarceramento vendo os limites do sistema penitenciário, pensando no cálculo aritmético dos custos.
4) Moraes defendeu aos senadores na CCJ a aplicação de pena já na audiência de custódia. Como você vê essa questão? É possível mensurar o impacto disso no desencarceramento?

Isso é absolutamente inconstitucional, a antecipação da punição. A solução que ele deveria ter falado, constitucionalmente, é a aplicação do princípio da presunção de inocência. A audiência de custódia deveria garantir todas as condições para que fosse cumprida a Constituição. Essa proposta dele eu vejo como um absoluto descaso com os princípios básicos – e ele, sendo professor de Direito Constitucional, deveria saber. Ele quis, de alguma forma, propor uma solução diferente, mas na verdade a posição dele não se sustenta em nenhuma base jurídica.

 

5) Em junho do ano passado, o STF afastou a hediondez do tráfico privilegiado, medida que pode ter impactos relevantes sobretudo na população carcerária feminina. Visando o desencarceramento de mulheres, quais os próximos passos possíveis a partir de agora?

Eu sou meio cética sobre os efeitos do não reconhecimento da hediondez do tráfico privilegiado. Dos dados que a gente tem do Rio de Janeiro, são pouquíssimas as mulheres que estão efetivamente encarceradas pelo parágrafo 4º do artigo 33 [Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa]. Isso se dá por dois motivos: primeiro porque normalmente nas denúncias não vem o parágrafo 4º, isso só acontece no final do processo e com muito esforço da defesa. O que nós temos dentro do sistema penitenciário, pelo menos nas análises que a gente fez com base nos dados encaminhados para a Defensoria, foram pouquíssimos casos de mulheres encarceradas pelo parágrafo 4º. O que isso significa: que ou podem ser presas provisórias com denúncia apenas pelo caput do artigo 33 (e ainda não tendo reconhecido o parágrafo 4º) ou a própria audiência ou o magistrado responsável já tenha concedido liberdade provisória. Portanto, eu vejo esse avanço no Supremo mais como uma questão simbólica importante – eu não estou desmerecendo a importância política desse reconhecimento – mas em termos concretos, pelo menos no Rio de Janeiro, isso vai ter um impacto mínimo porque o grande problema justamente hoje no Brasil é: o tráfico de drogas é um crime que já autorizaria uma liberdade provisória e já autorizaria uma liberdade, por exemplo, na audiência de custódia. O que impede que isso aconteça? Uma postura bastante autoritária e repressiva do juiz, que dá um peso muito grande a uma acusação por tráfico, como se essa acusação por si só já significasse uma necessidade de prisão. E muitas vezes o que acontece é que somente vai se dar a libertação dessas mulheres depois que elas são condenadas, quando finalmente se é reconhecido o caráter privilegiado. Eu costumo dizer que nós temos uma situação muito estranha no Brasil, que é a seguinte: enquanto prevalece o princípio da presunção de inocência, portanto, enquanto a pessoa não tem ainda uma condenação, ela é mantida provisoriamente presa. Depois que ela é condenada e tem um título condenatório é que muitos desses réus, e dessas mulheres acusadas, especialmente, são colocados em liberdade. É uma situação meio esdrúxula, mas é o que a gente observa na prática.