PBPD Entrevista: Luís Carlos Valois

17 de janeiro, 2017 Plataforma PBPD Permalink

No primeiro PBPD Entrevista de 2017, a Plataforma entrevistou o juiz Luís Carlos Valois, à frente da Vara de Execução Penal do Amazonas há 17 anos e porta-voz da organização Law Enforcement Against Prohibition – Brasil.

Chamado pelo secretário de Segurança do Estado para ajudar nas negociações que libertaram 10 reféns na rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, Valois comenta os impactos da Lei de Drogas nas prisões brasileiras, o papel da imprensa na cobertura policial e afirma: “Juiz deve ser juiz, não combatente”

Confira abaixo a entrevista feita por e-mail:

 

1) Levantamento feito pela Folha de S. Paulo apontou que em 2016 houve uma média de uma morte por dia nos presídios brasileiros. Há estudos que indicam que dentro das prisões brasileiras, a chance de alguém morrer é dez vezes maior do que fora delas. Há também um estudo internacional que indica que a prisão produz transtornos mentais. Nesse cenário, é honesto falar em ressocialização? Como chegamos até aqui – e o mais importante: é possível reverter esse cenário?

Nunca foi honesto falar de ressocialização. A violência e os transtornos mentais são uma constante na história da prisão. Nenhuma prisão ressocializa. Mudar o comportamento faz parte da opção de cada um. A prisão quando nasceu, nasceu segregação pura e simples, o argumento ressocializador veio com o tempo, como subterfúgio para melhorar a situação das pessoas encarceradas, mas todos sabiam que a prisão não tem esse efeito. O que se deve fazer é amenizar o caráter criminógeno da prisão e, para tanto, pelo menos nos dias atuais, não se precisa recorrer a uma mentira, que é a ressocialização, basta que se respeite o fundamento do Estado Democrático de Direito, que é a dignidade da pessoa humana.

As prisões, apesar de elas próprias serem antinaturais, porque o ser humano não foi feito para viver atrás de grades, deve respeitar o máximo a dignidade da pessoa e, para tanto, há lei nesse sentido, que igualmente deve ser cumprida. Não há necessidade de se enfeitar a prisão com o argumento ressocializador para se concluir que na prisão precisa de escola, saúde, esporte etc., porque há seres humanos na prisão e tais atividades, em situação de cárcere, são o mínimo que se pode esperar como respeito à dignidade dessas pessoas.

Sobre como chegamos até aqui, penso que nunca saímos da barbárie que é o encarceramento. O sofrimento pode nem sempre ser visível, como no caso das chacinas recentes, mas para a pessoa encarcerada o sofrimento sempre existiu. Sendo a prisão pura e simples exclusão e segregação, reverter esse cenário só é possível com menos encarceramento, com uma política criminal que vise alternativas penais, deixando-se paulatinamente a prisão de lado.

 

2) O discurso do “caos generalizado” nas prisões brasileiras tem impulsionado a discussão sobre privatização do sistema carcerário no país. As execuções no Complexo Prisional Anísio Jobim, administrado pela empresa privada Umanizzare desde 2014, podem frear o ímpeto privatizante no sistema prisional? É correto afirmar que a privatização de presídios impulsiona o superencarceramento?

No Brasil não há que se ter medo de a privatização impulsionar o superencarceramento porque já há um superencarceramento e milhões de mandados de prisão na rua a serem cumpridos, sem contar o discurso de ódio e de aumento de penas que, diga-se de passagem, não é resultado dessas empresas. Na verdade, por aqui, as empresas que trabalharem com administração de prisões já têm sua atividade garantida por décadas sem precisar estimular o aumento de penas ou a criação de crimes. Quanto ao fato da rebelião em Manaus, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim não era administrado por uma empresa privada, mas apenas tinha serviços terceirizados a cargo dessa empresa. A administração continuava com o Estado, muito embora o fato possa realmente servir como argumento contra a privatização, na medida em que é uma experiência de trabalho com empresas privadas que se demonstrou inócua.

Na verdade, a privatização ou a terceirização, é mais do mesmo. A prisão nasceu privada para ser estatizada no século XIX e, como a estatização não deu certo, pensam em privatizá-la de novo. Essa é a história da prisão, a história da eterna reforma. Porque não conseguimos prescindir dessa forma de punição, estamos sempre a reformando, dando ares de coisa nova para parecer que há algum sentido na segregação dessas pessoas.

 

Sobre a criminalização das drogas, não há outro caminho para diminuir o encarceramento que não seja repensar a questão da proibição das drogas. Se há que se pensar em prender menos, há que se iniciar parando de prender pessoas por causa de uma relação comercial voluntária, sem violência. Se o comércio de drogas causa violência não é por causa do comércio, mas por causa da proibição. O dono de uma boca de fumo mata o dono de outra boca de fumo porque não pode ir ao Procon.

 

3) A política de combate às drogas é a grande responsável pelo aumento exponencial no número de presos. Em 2016, no entanto, importantes decisões que contrariam essa lógica foram tomadas em espaços como STF (afastamento da hediondez do tráfico privilegiado) e MPF (importação de sementes de cannabis). Ao mesmo tempo, o atual ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, continua apostando no discurso de guerra às drogas para combater a criminalidade no país. Setores do Ministério Público criticam a “suposta” hiperpunitividade e defendem mais repressão. Como o senhor vê esse descompasso entre as instituições e mesmo entre os poderes?

Essa é uma característica do homem público atual. Ele tem uma função, se especializa naquela atividade quase burocrática, e não consegue enxergar o todo. Grande parte do Ministério Público e da magistratura também não têm consciência da natureza social do seu trabalho, atuam tecnicamente, preenchem formulários, pareceres formulários, despachos formulários e até sentenças formulários, enquanto milhares de pobres são enviados para as prisões. Nem pobres esses técnicos vêm, porque, para eles, são apenas réus, indiciados, sentenciados, como se não houvesse uma seletividade injusta oriunda de uma injustiça social mais grave ainda.

Assim, sem uma visão global, fica fácil mandar as pessoas para a cadeia. O Judiciário manda prender e se acomoda no argumento de que as péssimas condições da prisão são culpa do Poder Executivo. Como se a prisão não tivesse igualmente que cumprir a lei em sua estrutura e forma de funcionamento. Estamos mandando pessoas para prisões ilegais, mas esse é mais um fato que fica esquecido na técnica do dia a dia.

Sobre a criminalização das drogas, não há outro caminho para diminuir o encarceramento que não seja repensar a questão da proibição das drogas. Se há que se pensar em prender menos, há que se iniciar parando de prender pessoas por causa de uma relação comercial voluntária, sem violência. Se o comércio de drogas causa violência não é por causa do comércio, mas por causa da proibição. O dono de uma boca de fumo mata o dono de outra boca de fumo porque não pode ir ao Procon.

Donos de bares não matam donos de outros bares. E, pior, estamos prendendo pessoas porque estavam vendendo drogas em um local que vende drogas. As prisões estão abarrotadas de drogas, tudo consequência do superencarceramento. Mas essa é outra questão que não se percebe quando se enfia a cabeça na sua atividade burocrática sem olhar para o lado, esquecendo que o problema é de todos, que o Estado é um só.

A proibição das drogas tem criado criminalidade não só em razão do comércio em si, porque quando se prende um traficante na rua (e só se prende traficante do varejo, aquele vendendo na rua, nunca o grande empresário, aquele que não chega nem perto da droga), esse traficante é logo substituído por outro. Então estamos criando um exército na rua e nas penitenciárias. A pessoa é presa, substituída por outra, mas passa a compor o exército do sistema carcerário. Quando cumpre a pena, sai para lutar por seu espaço perdido, e aí [o resultado é] mais violência.

 

4) Após conceder entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o senhor foi alvo de ameaças após a matéria acusá-lo de ter ligação com o crime organizado. Lendo a decisão do STJ em que o caso é tratado, a menção ao seu nome é feita sempre por terceiros e não há nenhuma decisão judicial sua que tenha sido apontada como fruto de corrupção. O senhor se sente perseguido por ser um juiz garantista? Por que hoje é tão difícil diferenciar o acusador do julgador?

Eu penso que o juiz da execução é historicamente incompreendido. Acho que foi o que aconteceu. Mesmo que fosse verdade tudo que há nas gravações, realmente não havia lá nenhum fato típico, mas havia presos manifestando consideração para com o juiz, respeito para com o juiz, e isso é quase inconcebível hoje em dia. Parece que o juiz precisa ser temido, odiado mesmo, para ser um bom juiz. O juiz do imaginário é o juiz que manda prender, bravo, quase um policial que, também no imaginário, deve ser rigoroso e até violento. O juiz da execução foi criado apenas para zelar pelo direito do preso e ser respeitado pela população carcerária – deveria ser prova de bom trabalho.

Assim, não me sinto perseguido por ser um juiz garantista, eu me sinto ameaçado por ser um juiz que trabalha. Se eu não trabalhasse, ficasse só no meu gabinete assinando formulário, não haveria problema nenhum. Acho que qualquer juiz que trabalhe e estude a fundo o seu objeto de trabalho, principalmente um juiz da execução, vai ser incompreendido. Nessa época de ódio em que vivemos é pior, porque falar em direito de preso é quase uma heresia. É como se desrespeitar a lei fosse popular e desejado pela sociedade. Quanto a diferenciar acusador de julgador, faz parte da dificuldade de raciocínio também inerente aos tempos atuais, dificuldade presente na sociedade e até no Judiciário. Este quando cria, por exemplo, varas de combate ao crime organizado, está se colocando como combatente, como se o juiz pudesse ser combatente de algo. Ora, juiz deve ser juiz, não combatente. Há uma confusão geral entre ser juiz e ser policial ou acusador, resultado de um medo propagado quase propositalmente, um medo que faz com que a sociedade se agarre em qualquer solução simplista, mesmo que tal solução seja mais mortes, mais violência.

 

5) A imprensa costuma fazer a cobertura jornalística da guerra às drogas sem qualquer questionamento crítico, atuando como uma espécie de porta voz da polícia e do Ministério Público. O que o senhor pensa sobre isso?

Existe uma relação promíscua e prejudicial entre polícia e imprensa. Prejudicial para a sociedade, mas prejudicial para ambas também. A imprensa enaltece o trabalho da polícia, camuflando suas falhas, porque quer informações para a primeira página, quer agradar seus contatos, suas fontes. Mas ao mesmo tempo em que a imprensa ajuda o policial a posar de herói, deixa de mostrar as péssimas condições em que ele trabalha, as delegacias caindo aos pedaços, as viaturas sem combustível, a ausência de material de expediente, armas velhas, IML sucateado. Já o policial acaba esquecendo a crítica ao governo, seu patrão, feliz ao posar de herói nas páginas dos jornais. Vive com um salário de miséria porque a imprensa ajuda com que ele se alimente de uma imagem forjada. Assim, a crítica, no meio policial, é quase ausente, praticamente proibida. O policial perde a capacidade de criticar a sua própria atuação e sente um ódio tremendo de quem o faz, pois, afinal, a sua imagem é quase tudo que lhe resta.

A ausência de crítica à guerra às drogas na imprensa é oriunda da ausência de crítica geral nessa área. Como a polícia está mais concentrada nas drogas, mais fáceis de serem apreendidas, do que na investigação de homicídios, sequestros e roubos, mais complexos, é enaltecendo a guerra às drogas que se vai enaltecer a atividade policial.

Quanto ao Ministério Público, penso que é muito difícil para os representantes ministeriais se manterem isentos quanto à atividade repressiva do Estado. Se já é difícil para os juízes, imagine para um promotor, designado por lei para atuar como acusador nos processos criminais. Promotores, juízes, e até alguns defensores, que vêm de uma classe específica da sociedade, diferente da classe social que está nas prisões, trazem para as suas funções o medo generalizado presente no meio social de onde vêm. Hoje em dia tem se tornado muito difícil discernir, na prática, a atividade do Ministério Público, e até a do Judiciário, da atividade da polícia. Todos querem ser polícia e atuar de uma forma ou de outra combatendo a criminalidade, valendo, então, para todos a mesma ausência e dificuldade de crítica explorada e proporcionada pela imprensa.