O artigo ressalta o ponto de vista das pessoas que se encontram em situação de rua, entendidas como aqueles sem moradia adequada, estável, segura e permanente. Tais pessoas, ao mesmo tempo em que têm mais problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas que a população em geral, têm também maiores dificuldades para se engajar com o tratamento. Além disso, buscam cuidados à saúde mais frequentemente em situações de crise, o que implica em maiores custos assistenciais. Assim, a efetividade do tratamento requer uma abordagem que considere as necessidades de cuidado dessas pessoas de modo integral.
Nesta revisão os autores apresentam os resultados com alto nível de sofisticação metodológica: uma meta-etnografia, que recorre a uma revisão sistemática da literatura para selecionar os estudos a serem revisados. Na meta-etnografia, extraem-se dos estudos publicados tanto as citações de falas dos participantes quanto as interpretações dos autores, que são comparadas usando técnicas específicas e refinadas visando uma interpretação de mais alto nível dos relatórios das pesquisas qualitativas previamente publicadas e selecionadas. Sínteses de estudos qualitativos vêm sendo crescentemente reconhecidos como relevantes na implementação de programas e serviços componentes de políticas públicas. Após uma rigorosa estratégia de seleção de estudos, foram incluídos relatórios de pesquisas realizadas nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, que envolveram 462 participantes, a maior parte homens e membros de grupos étnicos minoritários (negros, hispânicos, pardos e indígenas), recrutados tanto nas ruas quanto nos mais diversos tipos de serviços.
Os tratamentos baseados na abstinência foram percebidos como eficazes por quem os utiliza ao passo que podem contar com o apoio dos pares, no entanto, participantes relatam que a imposição da abstinência aumenta o desejo de consumo das drogas de preferência e ainda tais serviços não contemplam questões subjacentes como moradia e renda. Programas de habitação que envolvem abordagens de redução de danos do tipo ‘Housing First’, programas de gestão do consumo de álcool (‘managed alcohol programs’) e casas de passagem foram vistos como locais de proteção e segurança, com a abordagem da redução de danos viabilizando o controle dos sintomas de abstinência mais severos. O apoio dos pares e uma equipe que se priva de julgamentos também é considerada importante nesses locais, ainda que a disponibilidade do álcool seja vista como desafiadora. Intervenções visando a redução de danos oferecidas online, finalmente, são bem avaliadas pela flexibilidade, facilidade de uso e abordagem sem julgamentos, no entanto, a dificuldade de acesso aos dispositivos eletrônicos é frequentemente um obstáculo.
Como é o tratamento eficaz na perspectiva das pessoas em situação de rua que vivem problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas?
Uma conclusão central dos autores é que a maneira como os serviços e tratamentos são fornecidos é mais importante que o tipo de tratamento oferecido. Nesse sentido, são valorizados: (1) serviços cujos ambientes sejam facilitadores, ou seja, amigáveis, limpos, acolhedores, seguros, que promovam a privacidade, que não vitimizem pessoas que já viveram sucessivos traumas e ainda que contenham com uma equipe que os trate de forma respeitosa, valorizando seus esforços no tratamento; (2) serviços que ofereçam apoio compassivo e emocional, sem julgamento e estigmatização, e não os considerem ‘viciados’ e ‘bandidos’, com apoio de pares que inspirem esperança e entendam suas experiências, e que também considerem suas necessidades práticas de alimentação, vestuário, medicamentos, higiene, cuidados médicos, benefícios assistenciais etc.; (3) serviços disponíveis por um tempo longo o suficiente pra evitar recaídas e entrar em recuperação, com uma rede de suporte para apoio contínuo; (4) serviços que viabilizem a oportunidade de escolha, de estabelecimento de seus próprios objetivos, com flexibilidade no programa de tratamento (por exemplo, participantes de programas de gestão do consumo de álcool experimentaram períodos de abstinência justamente por se sentirem capazes de optar por parar de beber por conta própria); (5) serviços que ofereçam oportunidades para (re)aprender a viver, ou seja, que incluam intervenções voltadas para promover habilidades de vida como usar o computador, desenvolver um hobby, culinária, jardinagem etc., proporcionando objetivos e uma estrutura de vida que fomenta sua identidade pessoal, auxiliando a compreensão de papeis e rotinas e o alcance de alguma estabilidade em suas vidas.
Ao final, apresenta-se um modelo conceitual novo e original, ressaltando três componentes críticos para a efetividade do tratamento do uso problemático de álcool e outras drogas do ponto de vista das pessoas em situação de rua: (1) serviços com um contexto de bons relacionamentos, (2) com cuidado centrado na pessoa e que (3) contemplem a complexidade da vida das pessoas.
Os autores destacam, como aspecto original do estudo, a importância da estabilidade dos programas de tratamento para as pessoas em situação de rua com problemas devido ao consumo de álcool e outras drogas. Foram bem avaliadas, especialmente pelas mulheres, intervenções mais extensas (de prazo mais longo) e que eram oferecidas de modo mais estável, sem mudanças maiores na equipe assistencial ou na proposta terapêutica.
Os participantes, de modo geral, manifestaram preferência por serviços orientados pela filosofia da redução de danos. Os autores, no entanto, destacam a importância do acesso a uma série de intervenções com oportunidades para escolher a abordagem que melhor convém aos usuários. Assim, em um sistema verdadeiramente flexível e atento às necessidades das pessoas, tratamentos baseados em redução de danos e abstinência seriam duas extremidades de um contínuo: a baixa exigência da redução de danos, por um lado, fundamental para o envolvimento das pessoas no tratamento e que, por outro lado, ao se encontrarem abertas e prontas para interromper o consumo, poderiam se servir de tratamentos baseados na abstinência. Para isso, é necessária uma iniciativa complexa, flexível e interinstitucional.