A partir do exame de sentenças relacionadas ao crime de tráfico de drogas proferidas em 2015 pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a pesquisa que embasa o artigo buscou entender como as juízas e os juízes diferenciam os crimes de uso e de tráfico. Tratou-se de pesquisa empírica de cunho qualitativo que teve como base a técnica de análise de documentos, cuja fonte foram processos envolvendo tráfico de drogas disponíveis no banco de dados do TJRJ, ofertado à Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DEPAJ/DPERJ).Do total de 2938 processos, foram sorteados 294 como universo amostral da pesquisa, número considerado pelos autores de tamanho relevante para assegurar a possibilidade de generalização. Desse montante, 72% dos processos tiveram sentenças condenatórias, 16% absolutórias e 12% não foram examinadas. A metodologia empregada na análise dos documentos foi a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), pela qual se propõe formular noções teóricas a partir dos dados estudados, sem a elaboração de hipóteses antes de se realizar o campo de pesquisa. E mediante um processo indutivo de categorização de dados, os autores buscaram criar categorias analíticas que explicassem o fenômeno observado.
Nesse sentido, foram criadas sete categorias de justificativas utilizadas para condenar e sete para absolver, sendo divididas em três grupos mais amplos: (i) inferências probatórias, (ii) fundamentos da inferência probatória e (iii) controle de provas. As (i) inferências probatórias buscaram justificar a autoria e a posse de drogas com base nos elementos de prova, sendo subdivididas em “descrição do flagrante”, “materiais apreendidos”, “características do réu” e “local”, categorias comuns à condenação ou à absolvição, além de em “confissão” para condenar e “MP pediu absolvição” para absolver. Os (ii) fundamentos da inferência probatória representaram as justificativas à possibilidade de aplicar as inferências, sendo categorizados pelos autores somente como “representações”. Por fim, no grupo do (iii) controle das provas estavam as justificativas que embasam a seleção das fontes da decisão, categorizadas em “credibilidade dos meios e elementos de provas”.
Antes de adentrarem na análise dos dados obtidos a partir da pesquisa qualitativa, os autores fazem retomada teórica sobre os critérios de diferenciação entre os crimes de uso e de tráfico. Apresentam pesquisas anteriores que evidenciam ter o §2º do artigo 28 da Lei de Drogas estabelecido critérios duplamente subjetivos: primeiro, por não estipular parâmetro objetivo de aplicação, cabendo a agentes do sistema criminal definir a quantidade, a natureza, o local e as condições relacionadas à intenção de tráfico ou de uso; e segundo, por estabelecer as circunstâncias sociais e pessoais, a conduta e os antecedentes como determinantes para definir qual seria a destinação da droga. Perante esse panorama, os autores destacam a importância da polícia no processo de incriminação das pessoas apreendidas com drogas, por ser a principal responsável pela administração dos tipos penais, dando preferência à promessa punitiva da prisão cabível ao crime de tráfico em lugar das penas alternativas correspondentes ao uso.
Ademais, os autores apresentam quatro fenômenos identificados em pesquisas sobre a aplicação da Lei de Drogas na fase judicial do processo, especialmente nas focadas no momento decisório. Seriam os seguintes: (i) a inexistência de um padrão na aplicação dos critérios, bem como a presença de outros critérios que não os legais; (ii) julgamentos baseados em representações estereotipadas das pessoas acusadas; (iii) a presença dos testemunhos de agentes de segurança pública (policiais) como principal meio de prova; e (iv) o caminho dos processos no sistema de justiça criminal, iniciado com prisões em flagrante, sem maiores investigações durante o inquérito policial, com defesas técnicas muitas vezes precárias, trâmite judicial bem mais rápido em comparação a outros tipos penais e resultando, na maioria dos casos, em condenação.
Os resultados da pesquisa originária do artigo se assemelham aos indicados na literatura prévia e nas demais pesquisas apresentadas no artigo, evidenciando a necessidade de maior atenção a tais estudos. Foi constatado pelos autores que as categorias “inferências probatórias”, “fundamentos da inferência probatória” e “controle de provas”, que embasaram a análise dos dados, se repetiram tanto em sentenças condenatórias quanto nas absolutórias; revelando haver uma padronização no procedimento de justificação das decisões judiciais.
Os autores destacam que as categorias de inferências probatórias por eles identificadas como “descrição do flagrante” e “confissão do acusado” constituíram a justificativa mais observada nas sentenças analisadas, seja para condenar ou absolver, e tendo os testemunhos dos agentes de segurança que realizaram a prisão como principal fundamento. A falta de parâmetros na aplicação do §2º do art. 28 da Lei de Drogas, em especial com relação à quantidade de drogas apreendidas e ao que se deve considerar como natureza, variedade e acondicionamento característico de tráfico, assim como para a quantidade de dinheiro apreendido, também é apontada pelos autores como resultado da pesquisa. Indica-se, assim, que os critérios legais permitem maior discricionariedade das juízas e dos juízes para decidirem de forma subjetiva.
Outro elemento já observado em pesquisas anteriores e que se repetiu no estudo apresentado foi o uso de noções estereotipadas. Os autores pontuam que magistradas e magistrados empregam representações sobre o crime de tráfico baseadas em senso comum (verossimilhança e experiência pessoal) ou em um senso comum qualificado (experiência enquanto magistrado/a) em todas as espécies de decisões. Em adição, os autores constataram como as magistradas e os magistrados, a despeito de reconhecerem certo grau de fragilidade no conjunto probatório, justificam as sentenças pela possibilidade de condenação baseada em indícios e na dita “necessidade” de condenar, diante da importância dos bens jurídicos ameaçados.
Identificaram-se na pesquisa, ainda, indícios de maior tolerância a fragilidades nos testemunhos de policiais em comparação aos testemunhos da defesa e ao depoimento da ré ou do réu. Para os autores, a construção da legitimidade policial é tão forte dentro da instituição judiciária que, mesmo quando exercido controle negativo sobre os elementos de prova dela oriundos, as juízas e os juízes sentem necessidade de explicitar que o “saber privilegiado” ostentado por agentes de segurança pública não foi, de fato, refutado.
Por fim, os autores concluem que, diante de um conjunto probatório fraco, os casos relacionados a drogas são entendidos como “prontos” já no flagrante, preservando-se o protagonismo do meio de prova mais comum nos julgamentos a eles relacionados, que é o depoimento policial. Para tanto, magistradas e magistrados justificam as sentenças em aspectos subjetivos e sem relação direta com a produção probatória, como estereótipos, ou sem parâmetros definidos em lei, como a quantidade de dinheiro ou de droga apreendida.